Clito Fornaciari Júnior Advocacia


Artigos

O trato dos honorários no novo Código de Ética

3\06\2016
CLITO FORNACIARI JÚNIOR
1. Da consideração dos honorários de advogado no novo Código de Ética
Vem de ser aprovado o novo Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)1 que, embora esteja cuidando de um ente constitucionalmente visto como indispensável à administração da Justiça, com deveres que transbordam aos elementares de um prestador de serviços, se preocupa também, por ser ele um profissional, com a questão de sua remuneração.2
Assim, delineia o Código, de um lado, os aspectos relevantes à definição contratual da remuneração, impondo também limites à liberdade de contratar. De outro lado, considerando os honorários decorrentes de demanda judicial, reafirma a concepção que se inaugurou com o Estatuto da Advocacia, em 1994, no sentido de os honorários, mesmo aqueles advindos da sucumbência, serem verba remuneratória, destinada, pois, exclusivamente ao advogado.
2. Dos elementos a serem considerados para a definição dos honorários contratuais
Que o advogado precisa ser remunerado não se questiona, daí o direito de ajustar com o cliente o seu estipêndio, que se impõe seja marcado pela moderação, à qual se chega mercê da adequação do valor da paga a elementos da questão que lhe está sendo submetida e da condição da própria pessoa que o contrata (art. 49 do novo Código de Ética). Nessa linha, além de tomar em consideração “a relevância, o vulto, a complexidade e a dificuldade das questões versadas” (inciso I), “o trabalho e o tempo a ser empregados” (inciso II), deve também atentar para “a condição econômica do cliente” (inciso IV) e a circunstância de ser um “cliente eventual, frequente ou constante” (inciso V), entre outros aspectos.
Os elementos a se atender, porém, ficaram vinculados, por imposição do novo Código, ao respeito do valor mínimo de honorários previsto na tabela que deve ser aprovada pelo Conselho Seccional do local da prestação dos serviços. Já havia previsão ética neste sentido, dizendo que o advogado deveria evitar o aviltamento dos valores, “não os fixando de forma irrisória ou inferior ao mínimo fixado pela Tabela de Honorários”. Agora, todavia, essa imposição encontra-se no rol dos “deveres do advogado” (art. 2º, parágrafo único, inciso VIII, letra f), facilitando, portanto, a constatação da falta ética, já que sua inobservância, objetivamente considerada, marca-se como aviltamento de honorários.
Diante desse enquadramento, vinculando o advogado à tabela, dois pontos precisam ser realçados: 1º) a imposição é quanto à observância do mínimo previsto na tabela, o que não é nada alentador, de vez que os valores mínimos, segundo notas de orientação constantes da Tabela da Associação dos Advogados de São Paulo, pioneira na matéria, “só devem ser aplicados nas causas de valor inestimável ou naquelas em que, através da aplicação do percentual específico, resultar honorário inferior ao mencionado limite mínimo”;3 2º) a regra ética diz respeito ao relacionamento entre os advogados e destes com a Ordem, não vinculando o Judiciário, embora muitas decisões tenham abrigado a tabela, mas fazendo-o somente em relação ao mínimo,4 desprezando, pois, as suas regras quanto à fixação de honorários em percentuais sobre o bem da vida em disputa como por ela estabelecido.
Assim, o enfoque que há de ser conferido à previsão em tela é de caráter exclusivamente ético-disciplinar, de modo que o advogado poderá ser punido pela Ordem, caso contrate não respeitando a tabela, nada além disso, ou seja, não é este o critério de definição de honorários em eventual pedido de arbitramento, a não ser para se conceder o mínimo nela previsto.
3. Da antecipação de custas e despesas pelo advogado
Inovação maior, no entanto, se verifica com a permissão de contratação prevendo que o advogado assuma e, portanto, antecipe custas e emolumentos devidos pelo cliente ao Estado ou terceiros (art. 48, § 3º). A pretexto de enfatizar existir uma presunção de que as despesas do processo correm por conta do contratante, o parágrafo enseja esta oportunidade ao definir como lícita a retenção pelo advogado, no momento de prestar contas ao cliente, do valor atualizado das antecipações que realizou.
Sem querer fazer um juízo de valor sobre a previsão, o que não seria logicamente pertinente, cumpre sobre ela se meditar, até para que não se veja o advogado como alguém com capacidade financeira de fornecer à parte um complemento de atividade, além da advocacia.
Muito embora houvesse entendimento no sentido de o contrato quota litis abranger também o pagamento das despesas do processo,5 o certo é que tanto não se permitia, uma vez que essa possibilidade leva a que o cliente opte por um profissional igualmente em razão da vantagem econômica que ele fornece, o que não é o quanto deveria ser valorizado na escolha do advogado. Ademais, o contratado poderá desinteressar-se de buscar a justiça gratuita para o cliente, que a ela poderia ter direito, onerando, ao final e quiçá sem necessidade, alguém que poderia ter obtido no processo o direito de demandar sem ônus financeiro, nem no início, nem no final da demanda.
De outro lado, o contratante, com o adiantamento de custas e despesas pelo advogado, fica a ele devendo algo além de honorários pelo serviço, o que poderá representar um entrave à substituição do profissional que, certamente, colocará cláusula no contrato, prevendo que, em caso de revogação da procuração, o valor dos adiantamentos deverá ser restituído de pronto, atualizado e com juros. Desse modo, tal circunstância pode levar a parte, principalmente se necessitada, a ficar vinculada a um profissional em quem já não mais confia, quando a confiança deveria ser o único liame eficiente para a manutenção do vínculo.
4. Do contrato de prestação de serviços e de honorários
A novel disciplina rompeu, do ponto de vista formal, com o rigor que se exigia na contratação do advogado. A regra anterior impunha o contrato escrito (art. 35); a atual, além de firmar que não se exige forma especial, colocou que a prestação de serviços será contratada, “preferentemente, por escrito” (art. 48). Com isso, torna-se possível provar, nos limites da legislação civil, não a prestação de serviço, que se demonstra pela outorga de procuração e também pelo que veio efetivamente a ser produzido pelo profissional, mas cláusulas outras, como o próprio valor dos honorários, que poderá ser demonstrado por meio de testemunhas.6
Atenuou-se também a vedação à emissão e protesto de título de crédito. Permite-se, além do uso do cartão de crédito, um instrumento com feições inegavelmente mercantilistas, a nota promissória, de vez que não seria um título mercantil e se autoriza também o seu protesto, bem como o do cheque, “depois de frustrada a tentativa de recebimento amigável” (art. 52).
5. Dos honorários de sucumbência
A confirmação do direito do advogado aos honorários de sucumbência vem com a previsão de execução pelo advogado do capítulo da sentença que a eles condenou o demandado vencido (art. 51).
Desse modo, mais longe se fica da justificativa que ensejou a condenação do vencido ao pagamento das custas, despesas processuais e honorários advocatícios, que se prendia ao fato objetivo da derrota. Chiovenda (1969, n. 381, p. 207) bem ensinou que “a atuação da lei não deve representar uma diminuição patrimonial para a parte a cujo favor se efetiva”, de modo que haveria na condenação um sentido indenizatório ou ressarcitório, pois a parte vencida reporia, na integralidade ou conforme padrões legais, o quanto teve que despender o vencedor para obter aquilo que, houvesse a obrigação sido cumprida naturalmente, não precisaria ter gasto.
O caráter indenizatório, na linha, pois, de Chiovenda, ficou claro no Código de Processo Civil (CPC) de 1973, quando se previu que “a sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários advocatícios”, de modo que os honorários se destinariam à parte (ao vencedor) com o objetivo de recompor o pagamento que fizera ao seu advogado para que o representasse na busca da restauração de seus interesses lesados.
Tanto prevaleceu até o Estatuto da Advocacia, quando se concedeu ao advogado o direito autônomo aos honorários de sucumbência (art. 23) e, na mesma linha, o novo CPC firmando que “a sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor” (art. 85). Transformaram- se, desta forma, os honorários em remuneração paga ao profissional, paradoxalmente não por quem o contratou e a quem ele prestou serviços, mas sim pela parte em desfavor de quem ele atuou.
Evidente que a moderação, que o art. 49 impõe na definição dos honorários contratuais e que importa em justeza e adequação ao caso concreto, deve necessariamente considerar, a fim de que os honorários não se convertam em vantagem exagerada e desproporcional,7 que as verbas de sucumbência também caberão ao advogado, de modo a se levar em conta essa realidade no acerto final entre parte e advogado, como, aliás, previa, expressamente, o Código de Ética anterior,8 mas que o silêncio do novo Código não dispensou como regra ética de inegável alcance.
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1. Resolução 2/2015 do Conselho Federal da OAB, aprovada em 19 de outubro de 2015, para vigorar depois de 180 dias.
2. A matéria vem disciplinada no Capítulo IX do Código, a partir de seu art. 48 até o 54, em que pese existam outros dispositivos que são relevantes para o tema, como aqueles do art. 2º, principalmente a letra f do inciso VIII do parágrafo único, e dos arts. 12 e 17, que tratam da repercussão nos honorários dos casos de revogação da procuração, renúncia a ela e desistência da ação.
3. Item 2 das Normas Gerais da Tabela aprovada pelo Conselho Diretor da AASP em 13 de abril de 1977, livreto editado em 1989, p. 3.
4. “O arbitramento judicial dos honorários advocatícios ao defensor dativo, nomeado para oficiar em processos criminais, deve observar os valores mínimos estabelecidos na tabela da OAB, considerados o grau de zelo do profissional e a dificuldade da causa como parâmetros norteadores do quantum” (REsp nº 1.377.798, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. 19/8/14; AgRg no REsp nº 1.312.990, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 3/12/15; AgRg no REsp nº 1.550.706, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 5/11/15; AgRg no REsp nº 1.543.243, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 5/11/15).
5. Considerações a latere em parecer de Elias Farah, abordando honorários, moderação, custeio da causa, no Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP, em 18 de maio de 1989, reproduzido, posteriormente, em seu livro Ética Profissional do Advogado (2003, n. 12, p. 17).
6. O Código Civil admite a prova exclusivamente testemunhal para os negócios jurídicos “cujo valor não ultrapasse o décuplo do maior salário mínimo vigente no País ao tempo em que foram celebrados” (art. 227).
5. Considerações a latere em parecer de Elias Farah, abordando honorários, moderação, custeio da causa, no Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP, em 18 de maio de 1989, reproduzido, posteriormente, em seu livro Ética Profissional do Advogado (2003, n. 12, p. 17).
6. O Código Civil admite a prova exclusivamente testemunhal para os negócios jurídicos “cujo valor não ultrapasse o décuplo do maior salário mínimo vigente no País ao tempo em que foram celebrados” (art. 227).
7. Cf. LOBO, 1996, p. 115.
8. É a previsão do § 1º do art. 35 do Código de Ética pretérito, no qual constava: “os honorários da sucumbência não excluem os contratados, porém devem ser levados em conta no acerto final com o cliente ou constituinte, tendo sempre presente o que foi ajustado na aceitação da causa”.
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Bibliografia
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. v. III. 3. ed. Tradução da 2ª edição italiana. São Paulo: Saraiva, 1969. FARAH, Elias. Ética Profissional do Advogado. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. LOBO, Paulo Luiz Netto. Comentários ao Estatuto da Advocacia. 2. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 1996.

Dano presumido e o contrato de transporte aéreo

3\07\2012

PEDRO PAULO DE SIQUEIRA VARGAS

Foi publicado no sítio eletrônico do STJ matéria especial que versa sobre as situações fáticas em que a jurisprudência daquela Corte tem o dano moral por presumido (in re ipsa), apontando como uma delas o atraso em voo aéreo, pela prática do overbooking (disponível in http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=106255&utm_source=agencia&utm_medium=email&utm_campaign=pushsco). Não obstante, penso que o assunto merece rápida complementação, mormente porque, na íntegra da matéria, consta a seguinte asserção: “O transportador responde pelo atraso de voo internacional, tanto pelo Código de Defesa do Consumidor como pela Convenção de Varsóvia, que unifica as regras sobre o transporte aéreo internacional e enuncia: “responde o transportador pelo dano proveniente do atraso, no transporte aéreo de viajantes, bagagens ou mercadorias””.

O regime jurídico da responsabilização do transportador aéreo em face dos usuários de seus serviços na hipótese de evento danoso (seja por atraso, extravio de bagagem, lesão ou morte por acidente), porém, é tema espinhoso tanto na doutrina como na jurisprudência, pois há nesse campo um conflito de sistemas jurídicos.

De um lado, temos a Convenção de Varsóvia (Decreto n. 20.704/1931), que prevê, como regra geral, a responsabilidade subjetiva com culpa presumida (cf., neste sentido: SÉRGIO CAVALIERI FILHO, Programa de Responsabilidade Civil, 6ª ed., São Paulo, Malheiros, 2005, p. 340), bem como a tarifação da indenização, dispondo, no mesmo sentido, o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/1986) e a Convenção de Montreal (Decreto 5.910/2006). De outra banda, temos o Código de Defesa do Consumidor, que prevê a responsabilidade objetiva do fornecedor, bem como a ampla indenizabilidade pelos danos causados, nos termos do quanto gizado nos incisos V e X, do art. 5º, da Constituição Federal (cf., neste sentido: MARCO FÁBIO MORSELLO, Responsabilidade Civil no Transporte Aéreo, São Paulo, Atlas, 2006, pp. 258/259).

Por isso, há precedentes anteriores do STJ exigindo a prova do dolo ou culpa grave do transportador para que não incida a tarifação da indenização prevista no pacto internacional (cf., a guisa de exemplo: REsp 135.535/PB, Rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, 4ª Turma, j. 11/04/2000, DJ 07/08/2000, p. 108), isto é, aquele pretório já esposou a tese da prevalência das Convenções internacionais, mas seu entendimento atual é pela supremacia do CDC (cf., neste sentido: AgRg no AREsp 34.280/RJ, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª T., j. 11/10/2011, DJe 18/10/2011), o que justifica o fato de o overbooking ser tido por evento em que o dano se dá in re ipsa.

De qualquer forma, o debate ainda não está encerrado, pois o assunto foi levado ao Supremo Tribunal Federal, tendo sido reconhecida sua repercussão geral, na hipótese de extravio de bagagem (cf.: AI 762184 RG, Rel. Min. CEZAR PELUSO, j. 22/10/2009), sendo que o que lá se decidir terá o condão de confirmar ou mudar o entendimento perfilado pelo STJ, pois a verdadeira questão posta é o correto regime jurídico a ser aplicado na relação dos transportadores aéreos com seus usuários.

A notícia da imprensa e o fato notório

29\05\2012

CLITO FORNACIARI JÚNIOR

Em uma época em que a imprensa se solidifica como autêntico poder, tomando a dianteira em denúncias de irregularidades e reclamos de apuração, isso quando não ela própria já julga os denunciados, levando à queda de ministros e funcionários, ganha importância o quanto foi reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça como fato notório, sujeito, pois, à dispensa de prova, na linha preconizada pelo art. 334, I, do CPC. A questão se feriu quanto ao funcionamento e responsabilidade de centro de comércio popular, no qual existiriam comerciantes vendendo produtos falsificados, discutindo-se pela via do recurso especial princípios atinentes à produção de provas que teriam justificado a condenação da locadora do imóvel e do administrador do empreendimento. Com o especial se buscava a nulidade da decisão.

No voto vencedor que consolida o acórdão, o relator SIDNEI BENETI destacou que, no caso, a prática de ilícitos, amplamente noticiada, aliás, por vários veículos de imprensa, pode mesmo ser considerada fato notório, embora aduzisse a existência de outras provas, nos autos, conduzindo, no seu sentir, ao mesmo resultado (3ª Turma, REsp 1.125.739, julgamento em 03.03.2011, decisão por maioria de votos). Os dois votos vencidos (NANCY ANDRIGHI e MASSAMI UYEDA) não enfrentaram especificamente a questão do fato notório, firmando tese divergente em termos de responsabilidade, prescindindo, destarte, desse aspecto.

Igual pensamento relativamente à notoriedade já fora antes externado em julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, a propósito do mesmo fato, envolvendo, entretanto, outros interessados. Nesse outro precedente, do mesmo modo, se conferiu foros de verdade ao quanto noticiado, embora houvesse ressalvado o relator ÊNIO SANTARELLI ZULIANE (Apelação n. 605.855-4/7, julgamento em 11.12.2008), que “nem sempre o que a imprensa publica obtém notoriedade, embora ajude a mentalizar a certeza de que a verdade é pública”, além de aduzir outros aspectos a fim de buscar fortalecer sua conclusão no plano dos fatos.

Transparece claro estar sendo dada vazão, em ambas as decisões, a um suposto conhecimento pessoal dos julgadores, que acreditam ser verdade aquilo que se afirma no processo. A convicção, porém, se formou não a partir do quanto se trouxe aos autos, mas sim à luz do noticiário da grande imprensa, o que, entretanto, não tem condições de ser reconhecido como contendo foros de notoriedade, no sentido técnico processual.

o conhecimento externo e o juízo de valor acerca do fato pelo prolator da decisão não têm relevância como notório, conforme bem elucida NELSON PALAIA, separando a impugnação do fato em si e a impugnação da sua notoriedade: “De fato o juiz diante da impugnação à notoriedade de um fato alegado como tal, não poderá usar de seu conhecimento privado para decidir. A relatividade do conceito implica na adoção de um padrão médio de conhecimento dos fatos. O que é notório para um pode não ser para outro, logo o juiz não deve aceitar ou dispensar a prova em função de um padrão médio de cultura. O juiz não deve consultar a sua memória nesta hora, e sim raciocinar em termos do que está na memória coletiva daqueles que possuem um padrão médio de cultura” (Fato notório, Saraiva, 1997, n. 9.5, pág. 42). Em igual sentido, perfila-se ANTONIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, distinguindo os fatos notórios daqueles que são conhecidos tão-somente per famam et vocem publicam, dizendo: “Fatos que constituem objeto do conhecimento privado do juiz são aqueles fatos singulares de que o juiz veio a saber, como pessoa particular através de percepções sensoriais exercidas fora do processo e, assim, independentemente da observância dos procedimentos probatórios estabelecidos por lei.” (Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, 2000, n. 17, pág. 26).

Nessa linha de sentir, vem à luz a lição de CARNELUTTI, quando busca definir qual a incerteza que se mostra relevante para a justificativa da atividade probatória, concluindo, então, não ser a incerteza própria do fato, mas a controvérsia em torno dele. Aduz, então, que a incerteza das partes não é motivo da discussão nos processos, nem a certeza do juiz o exime de seguir os procedimentos probatórios estabelecidos para a determinação do fato controvertido, certeza essa que pode ser obtida pelo fato notório, mas que somente é notório quando a certeza do juiz é compartida por uma generalidade de pessoas (cf. A Prova Civil, Bookseller, tradução da segunda edição italiana, 2001, pág. 42 – nota 19), concluindo, então, ser a notoriedade uma forma de prova, o que cobra do julgador uma atividade construtiva, ainda quando se questiona somente a notoriedade do fato, de modo a não ser correto considerar a hipótese como de dispensa de prova.

O equacionamento técnico da notoriedade pode levar a que se discuta com fundamentos o quanto se torna público pela imprensa, pois nem tudo que é público é verdade, até porque, como diz LORENZO CARNELLI (El hecho notorio), citado por NELSON PALAIA, se divulgam e prosperam certas mentiras, apenas por serem fatos raros ou emocionantes (obra citada, pág. 45). Tangencia a colocação aquilo que GILMAR MENDES tratou, muito apropriadamente, como o direito que se encontra na rua. Preocupa, nessa linha de raciocínio, o crescimento de algo que se poderia tratar como uma notoriedade vulgar, quiçá tendo seu germe atrelado à crescente busca de princípios para interpretação da realidade processual, sem se ater à circunstância de ser o princípio lançado como elemento a alimentar a lei, que, por sua vez, quando posta, já dele retirou o quanto poderia ser retirado, deixando, pois, de guardar importância para a criação também da interpretação, pois seu destino seria a edição da lei para o que já terá servido. Na mesma toada e levando a idêntico mal, regras de simples exegese podem ser utilizadas como princípios jurídicos, deles se servindo mesmo diante de preceitos claros que não dependeriam de interpretação, de modo que a interpretação só faz alterar a lei, ao invés de servir para se entendê-la.

Restaria como forma de controlar o correto uso do instituto, tal qual também se coloca quanto ao exagerado uso de princípios no seio do processo, o reclamo, constitucional entre nós, de motivação das decisões, que é um poderoso instrumento de qualificação dos pronunciamentos judiciais e que poderia mostrar a exata linha divisória entre o notório técnico-processual e, portanto, legal, do simplesmente vulgar. Para tanto, porém, não se poderia entender motivada a decisão que se dá por feliz por haver conseguido êxito na sua busca de um conceito ou uma regra que acabaria sendo seu reles adorno. Tanto não conduz à motivação, de vez que essa haveria de ser não simplesmente formal, mas material, somente pela qual se conseguiria chegar a um controle da racionalidade do decisório, que é o quanto se há de perseguir. Sem isso, se aplaudiria e referendaria a decisão pelos seus adereços e não pelo quanto traz acerca do direito, que é unicamente o que a justifica, ainda que não a explique.

A prescrição das dívidas decorrentes de serviço de água e esgoto

14\03\2012

PEDRO PAULO DE SIQUEIRA VARGAS

A 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, utilizando-se da técnica de julgamento de recursos repetitivos, prevista no art. 543-C do Código de Processo Civil, decidiu da seguinte forma quanto ao prazo prescricional dos pagamentos devidos pelos usuários de serviços de água e esgoto:

PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. CRÉDITO NÃO-TRIBUTÁRIO. FORNECIMENTO DE SERVIÇO DE ÁGUA E ESGOTO. TARIFA/PREÇO PÚBLICO. PRAZO PRESCRICIONAL. CÓDIGO CIVIL. APLICAÇÃO.

1. A natureza jurídica da remuneração dos serviços de água e esgoto, prestados por concessionária de serviço público, é de tarifa ou preço público, consubstanciando, assim, contraprestação de caráter não-tributário, razão pela qual não se subsume ao regime jurídico tributário estabelecido para as taxas [...].

[...].

4. Consequentemente, o prazo prescricional da execução fiscal em que se pretende a cobrança de tarifa por prestação de serviços de água e esgoto rege-se pelo disposto no Código Civil, revelando-se inaplicável o Decreto 20.910/32 [...]

[...].

(REsp 1117903/RS, 1ª Seção, Rel. Min. LUIZ FUX, j. 09/12/2009, DJe 01/02/2010)

Esse aresto desperta a curiosidade do estudioso do Direito por uma única qualidade: ele é paradoxal. Convido o leitor a debruçar-se, então, sobre os paradoxos presentes na decisão e tirar algumas reflexões pontuais.

De início, deve-se ponderar que é bastante espinhosa a questão de saber se os créditos das prestadoras de serviços de água e esgoto possuem natureza jurídica de taxa ou de tarifa/preço público. Em apertada síntese, se forem compulsórios, trata-se de um tributo, ao passo que se forem facultativos, de uma obrigação civil.

Com efeito, o usuário pode, a qualquer momento, dispensar o serviço oferecido e desembaraçar-se, assim, do dever pecuniário, donde se conclui tratar-se, ao menos em tese, de uma obrigação facultativa. No entanto, caso esse usuário tenha domicílio em uma metrópole, que alternativa ele teria, além dos serviços prestados pela concessionária, para tomar banho, higienizar o lar ou simplesmente lavar suas roupas e louças? Não sendo o Direito uma ciência exclusivamente abstrata, mas sim a arte do justo e do injusto, como já se disse, parece que esse ponto dá azo a sérios questionamentos.

Todavia, relevando-se a discussão acima, o fato de a dívida ter natureza não-tributária, como se afirmou, não é fundamento suficiente para afastar a previsão do art. 1º do Decreto 20.910/32 e aplicar o Código Civil, como tem abundantemente decidido o mesmo STJ para débitos de origem diversa das ora discutidas (cf., à guisa de exemplo: 2ª T., REsp 1197850/SP, Rel. Min. CASTRO MEIRA, j. 24/08/2010, DJe 10/09/2010; 2ª T., REsp 1169666/RS, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, j. 18/02/2010, DJe 04/03/2010; 1ª T., AgRg no Ag 968.631/SP, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, j. 19/02/2009, DJe 04/03/2009).

No entanto, admite-se que, de fato, o débito em questão é uma tarifa e correta a aplicação do Código Civil. Ora, se o julgador partiu dessas premissas, deveria então ter extinguido o processo sem resolução do mérito, nos termos do art. 267, VI, do Código de Processo Civil, por falta de interesse-adequação. Explico.

O Código Civil pertence ao ramo do Direito Privado, que, por sua vez, caracteriza-se, dentre outros elementos, por regular “relações onde se encontram indivíduos em pé de igualdade” (ANDRÉ FRANCO MONTORO, Introdução à Ciência do Direito, 24ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 404). Ora, se estamos tratando de iguais, vez que na decisão em comento aplicou-se o Código Civil, por que então dar ao autor o benefício de manejar uma execução fiscal e livrá-lo das vias ordinárias? Qual o fundamento para tratá-lo como particular na aplicação do direito material e ente público sob ponto de vista processual? Creio que nem CHIOVENDA tenha ido tão longe na autonomia do direito de ação.

Enfim, ao se analisar o julgado acima colacionado, verifica-se que mais uma vez se cumpriu o ditado que diz que “quem muito abraça, pouco aperta”. Aplicando o art. 543-C do CPC, o STJ resolveu vários processos, levando a efeito a tão aclamada, celebrada e dogmatizada celeridade. Fez-se justiça em cada caso que se aplicou esse julgado? Diante dessas reflexões, é de se duvidar.

Da validade da sentença ilíquida

23\04\2010

CLITO FORNACIARI JÚNIOR

O Processo Civil moderno sempre buscou não ser um reles sistema de formalidades, no qual o uso da palavra errada fosse definitiva senha para o malogro da postulação deduzida em juízo. Assim, de longa data, apresenta uma teoria de nulidades que renega a forma pela forma, protege a finalidade dos atos, preservando-os sempre que essa seja alcançada, consagra a preclusão e, por fim, restringe a nulidade aos casos de existência efetiva de prejuízo.
Apesar dessa sistemática, alguns aspectos processuais têm proclamação expressa de nulidade ou termos que transparecem a tanto conduzir, criando no leitor mais apressado a ideia de que, relativamente a essas, os princípios de desprestígio da forma, enquanto apenas forma, não seriam aplicáveis, e o vício, diante de qualquer circunstância, teria que ser declarado, afetando todos os atos processuais que se lhe seguiram. Nessa linha, muitos colocam, por exemplo, a nulidade por falta de intervenção do Ministério Público (art. 246 do CPC), em que pese o sistema não a referende, sempre que, por exemplo, a situação que reclamava a intervenção do representante do Ministério Público saiu do processo protegida.
Relativamente à sentença, duas disposições inserem-se nessa mesma problemática. O parágrafo único do art. 459 afirma que, “quando o autor tiver formulado pedido certo, é vedado ao juiz proferir sentença ilíquida”. Por sua vez, o parágrafo único do art. 460 reza que “a sentença deve ser certa, ainda quando decida relação jurídica condicional”. Consequência do descumprimento desses preceitos seria a nulidade da sentença, por falta de correlação entre o decidido e o pedido. Será, porém, que a declaração da nulidade sempre se impõe?
Afirmativamente entendeu a 32ª Câmara de Direito Privado do TJSP, em acórdão relatado por WALTER CÉSAR EXNER (Apelação n. 992.07.010440-8, julgado em 01.10.2009). Cuidava-se de ação voltada ao cumprimento de obrigação de fazer, na qual a sentença de primeiro grau houve por bem rescindir o contrato de que decorria a obrigação, condenando a obrigada a devolver o quanto recebera e a pagar perdas e danos, inclusive lucros cessantes. Firmou o julgado que se “protraiu para a fase de liquidação de sentença a apuração dos lucros cessantes, estes que, eventualmente, poderiam se mostrar inexistentes”. Aduziu ser a sentença mais do que ilíquida: condicional, afirmando que “a sentença pode assumir caráter condicional quando o evento futuro é inerente ao direito material, não sendo autorizado ao julgador condicionar a eficácia da sentença a evento futuro e incerto por ela mesma criado”. Viu, nesse diapasão, nulidade da sentença, de modo que determinou o retorno do processo à primeira instância.
As regras consideradas não ensejam solução tão drástica, parecendo estamparem, no CPC, uma direção ao julgador, sem que o seu desrespeito possa colocar a perder toda a atividade jurisdicional desenvolvida. Evidente que um pedido certo deve conduzir a uma sentença líquida, apreciando se há o direito reclamado. Da mesma forma, a pretensão que não diga respeito a uma relação jurídica condicional deve conduzir também a uma decisão certa, devendo o magistrado atinar ao proferi-la para o implemento da condição, definindo, a partir disso, a relação jurídica que se lhe apresenta.
Não se pode, porém, sacrificar a atividade jurisdicional, fazendo retroceder a marcha do processo, se, diante de um pedido certo, o sentenciante não conseguiu chegar a um resultado igualmente certo. Diz, corretamente, ANTONIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA que “é claro que se no momento processual adequado para proferir a sentença o juiz não encontrar elementos para acolher o pedido tal como formulado, inclusive no tocante ao seu objeto mediato, deve julgar a causa ainda que por meio de sentença ilíquida” (Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, 2000, n. 251, p. 280).
Essa mesma contemporização se faz de rigor diante de decisão que desrespeitou o direcionamento do preceito. Para tanto, o primeiro passo é atinar para quem é o interessado na disposição legal, surgindo, de modo evidente, exclusivamente, a figura do autor. De outro lado, seu interesse em recorrer coloca-se apenas quando existirem elementos nos autos que permitiriam fosse prolatada a sentença líquida. Do contrário, ele estaria buscando um milagre, que não se faz possível, pois não teria como, sem elementos, exigir sentença líquida. Portanto, o interesse do autor cinge-se a buscar a decisão líquida em segundo grau e não simplesmente postular sua anulação, com a volta dos autos ao primeiro grau. A amplitude maior conferida aos efeitos da apelação pelos parágrafos do art. 515 pode abrigar também esse quadro, embora sem previsão específica sobre o assunto.
O recurso do réu seria evidente contrassenso: pedir a anulação seria usar a forma pelo simples gosto da forma, o que soa deslealdade; reclamar, desde logo, a decisão líquida, seria oferecer-se em holocausto. O réu não teria, portanto, o que postular em sede recursal, daí a ponderada colocação trazida em THEOTONIO NEGRÃO e outros (Código de Processo Civil, 2010, 42ª edição, nota 13 ao art. 459), dizendo que “se somente o réu apelar, o tribunal, desde que tenha a ação por procedente, manterá a sentença que determinou ulterior liquidação (RT 498/115, RF 256/299, JTA 43/108)”, até mesmo por ser essa a situação a ele menos ruinosa.
De qualquer modo, postergar a definição das perdas e danos para a fase de liquidação, notadamente quando a sentença já foi proferida, não é nenhuma monstruosidade. Por primeiro, não põe a perder toda a atividade jurisdicional desenvolvida pelas partes e pela Justiça durante o curso do processo. Não se retira o pleno direito do condenado ao contraditório, pois participará da liquidação, com direito a discutir, produzir provas quanto à questão que resta em aberto, e até mesmo recorrer da decisão que relativamente a essa fase venha a ser proferida. Ademais, não se faz letra morta dos procedimentos de liquidação regrados no Código e que sempre prestigiam a defesa, com o que se deixa claro que a necessidade de liquidação não é algo tão anômalo assim. Submeter a condenação ao procedimento de liquidação, por fim, não representa a inexorável derrota do condenado, pois, nessa etapa, como ensinam NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY, pode chegar-se a apuração de resultado zero ou até negativo para o quantum da condenação (Código de Processo Civil Comentado, 2001, 5ª edição, nota 2 ao antigo art. 610), o que atesta não ser um vício insuprível, nem prejudicial ao devedor, haver decisão ilíquida, mesmo diante de pedido certo.
Portanto, a linha sustentada pelo julgado comentado não se desenha correta, pois a razão de ser da regra foi desrespeitada, dado que se o problema era a iliquidez, dever-se-ia não anular o que fora feito, mas proferir, diante do pedido certo, acórdão líquido, só com o que cumpriria o parágrafo único do art. 459. A simples anulação é desperdício de atividade processual, que é artigo de luxo, a não merecer esse descarte.

Execução da tutela antecipada e astreintes

26\08\2009

CLITO FORNACIARI JÚNIOR

Há algum tempo, o sistema processual vem privilegiando a multa cominatória (astreintes) como modo de persuadir o devedor ao cumprimento de sua obrigação. Originariamente, ela se colocava para as sentenças condenatórias a adimplir obrigação de fazer; posteriormente, foi trazida para, quanto a essa mesma obrigação, alcançar-se o atendimento da tutela antecipada; e, por fim, foi estendida, em iguais situações, para a exigência das obrigações de dar coisa (artigos 461 e 461-A). Julga-se ser essa cominação uma forma eficaz de vencer a obstinação do devedor, dado que sua resistência, se infundada, importará no agravamento de seus ônus, pois, além de acudir a obrigação, terá, em função da demora, que suportar o pagamento da quantia resultante da aplicação da multa sobre o tempo de retardo.
Quando a multa é estabelecida na sentença final, transitada essa em julgado, tem-se o título executivo, de modo que se faz possível exigir o cumprimento da obrigação e, posteriormente, considerando-se os dias de atraso, cobrar a multa daí resultante, promovendo a execução dessas verbas, conforme o rito previsto para o cumprimento da sentença. Nesse caso, já será definitiva a condenação ao atendimento da obrigação de fazer, não fazer ou dar coisa, de modo que se fará possível também postular a implementação material da sanção, que é a multa que fora colocada como meio para que se conseguisse vencer a recalcitrância do devedor.
A questão tem, entretanto, outros contornos quando a fixação de multa diária dá-se objetivando compelir ao cumprimento de simples tutela antecipada, concedida, pois, antes da sentença final. Discutem-se, nesse passo, dois aspectos: a exigência do cumprimento da tutela antecipada; e diante de sua exigibilidade de imediato, sem o cumprimento pelo devedor, a cobrança da multa fixada. O problema que se põe nasce, basicamente, da circunstância de a tutela antecipada poder ser revogada ou modificada a qualquer tempo (§ 4º, do artigo 273, do CPC).
Apesar de existir quem discuta a possibilidade de execução imediata da tutela antecipada, em razão da falta de título que se amolde ao rol do CPC, caracteriza-se inegável paradoxo admitir-se sua concessão, mas, ao mesmo tempo e sem que seja conferido efeito suspensivo a recurso interposto contra decisão que a concedeu, desarmá-la de eficácia, por conta de deficiências formais, o que aconteceria caso se vedasse a sua pronta execução, ainda no curso do processo, antes, portanto, da sentença final e de seu trânsito em julgado.
Não há que se enfrentar o tema a partir da literalidade do rol dos títulos executivos, pois a deliberação que antecipa os efeitos da decisão – formalmente, simples interlocutória – tem a mesma natureza do provimento final do qual ela é mera antecipação. Igualmente, não é bom fundamento lembrar do risco de irreversibilidade do ato que será praticado, pois essa circunstância é de ser considerada antes da concessão da medida (§ 2º, do art. 273), de modo que, se existir tal risco, não será caso de deferir a tutela, não cabendo usá-lo como pretexto, quando se busca a efetivação da decisão.
Destarte, até mesmo para que se confira senso prático à concessão da tutela antecipada, a sua exigência há de ser de imediato, sempre que não houver recurso recebido no efeito suspensivo. Desse modo, cientificado pessoalmente o obrigado, caso não cumpra o preceito, passa a ficar sujeito ao pagamento da multa diária imposta com a finalidade de destravar sua resistência. Todavia, problema diverso é saber quando pode ser cobrada a multa que restará acumulada pelo retardo no cumprimento da obrigação firmada pela antecipação da tutela.
Nesse ponto, o entendimento não é tranquilo. Por simples amostragem, decisão da 12ª Câmara de Direito Privado do TJSP, relator CERQUEIRA LEITE (agravo de instrumento n. 7313035-1, julgado em 17.06.2009), nega a possibilidade de execução, tratada como provisória; enquanto acórdão da 34ª Câmara, relator GOMES VARJÃO (agravo de instrumento n. 1.258.902-0, julgado em 01.06.2009), afirma ser possível a realização da execução provisória.
Não impressiona o problema do título. Relevante é aferir-se o objetivo da antecipação da tutela e, mais do que isso, o que sua concessão confere ao autor. Nesse sentido, há de se ter presente que, ao se deferir a antecipação, está sendo dado ao autor, mesmo que em caráter provisório, o quanto ele pretende retirar do processo, ou seja, está se lhe dando, por antecipação, o próprio exercício do direito afirmado. A multa cominatória, por sua vez, não lhe é oferecida como bem da vida próprio, porém somente como instrumento, como meio coercitivo para que possa alcançar o bem da vida deferido, diminuindo a resistência do devedor.
Se a multa não é a tutela perseguida, nem lenitivo para o descumprimento da obrigação, nem indenização pelo quanto não se fez, sua cobrança, antes do trânsito em julgado da sentença, retira o foco do requerente de sua pretensão, evidenciando que a urgência que dizia ter talvez não fosse tão urgente, pois está inaugurando o desvio de rota, deixando à margem aquilo que veio postular. Assim, tal não se permite, podendo tomar-se de empréstimo o princípio da menor restrição possível, de que fala TEORI ZAVASCKI, a propósito da própria concessão (Tutela antecipada, Saraiva, 6ª edição, 2008, p. 78): há de se dar ao autor o mínimo indispensável, nada além disso. A execução da multa, além da própria tutela, traria ônus em demasia ao réu, antes que se tivesse o contraditório e a definitiva convicção do julgador.
As astreintes exercem função persuasiva, mesmo não se pagando de pronto seus valores. Saberá o devedor que, se não cumprir a antecipação, pagará a multa pela demora, o que é bastante para estimulá-lo ao cumprimento. Isso gera garantia para o processo, pois a antecipação é provisória e pode reverter, porém existem meios de se reporem as coisas diante da reversão. Todavia, nem sempre se terá certeza da possibilidade de recobrar os valores recebidos em execução das astreintes, daí o perigo de realizá-la, soando prudente lembrar para não a efetivar que “enquanto houver incertezas quanto à palavra final do Poder Judiciário sobre a obrigação principal, a própria antecipação poderá ser revogada, com ela, as astreintes” (CÂNDIDO DINAMARCO, Reforma da Reforma, Malheiros, 2002, apud Revista de Jurisprudência do TJRS, 271/138).
A execução da multa não é uma questão de conveniência. Trata-se de resguardar o processo e permanecer fiel ao objetivo da medida intentada, que era a satisfação do direito por antecipação e não o recebimento de um contrapeso, como substitutivo da obrigação principal.
Dessa forma, a execução da multa não tem lugar enquanto não se firmar a obrigação em definitivo e, ainda, o seu valor. Transitada em julgado a decisão, aí, então, opera-se regressivamente, apurando-se o tempo de demora no cumprimento da obrigação e, a partir daí, realiza-se a execução para pagamento de quantia certa.

Preservação do quanto reservado à lei processual

17\07\2009

CLITO FORNACIARI JÚNIOR

A legislação que gravita em torno do processo, não bastassem as dificuldades que por si só apresenta, também guarda complexidade pelo fato de existirem simultaneamente diversos legitimados a emiti-la. Assim, enquanto o art. 22 da CF coloca como competência privativa da União legislar sobre direito processual (inciso I), o art. 24 da CF confere competência concorrente à União, aos Estados e ao Distrito Federal para legislar sobre “procedimentos em matéria processual” (inciso XI) e, por sua vez, o art. 96, inciso I, confere competência privativa aos tribunais para elaborar seus regimentos internos. À distância, tudo parece processo, daí ao legislador despreocupado com minúcias, mas preocupado com agilidade, eficácia, abuso, afigura-se possível ainda inventar a roda, criando disposições com as quais julga poder tornar mais rápida e eficiente a satisfação do direito de quem se sinta lesado.
Processo é relação jurídica por meio da qual se realiza a função jurisdicional, marcando-se por assegurar direitos a quem nela precise ingressar ou é chamado a dela participar; procedimento é o desenvolvimento desta relação jurídica, traçando-se os caminhos que são deixados à disposição das partes para alcançar a finalidade que se põe como meta na relação jurídica processual. Em termos legislativos, a ideia de procedimento coloca-se abaixo daquela de processo: o procedimento é menos que o processo, dado que se cuida de uma de suas facetas, seria a sua visão externa, o seu modo de caminhar. A quem pode legislar sobre procedimento – e o Estado também pode – não é dado, portanto, restringir direitos e garantias que são lançadas na legislação processual ou estabelecer exigências que possam comprometer o direito de ter acesso à jurisdição. É lhe dada a atividade complementar, porém restrita ao modo de se desenvolver a relação.
Todavia, além dessas duas ordens legislativas, há uma terceira, que vem ditada pelos tribunais, aos quais se confere a elaboração de seus regimentos. Aos tribunais compete ditar normas sobre sua atividade interna. A CF preocupou-se em lembrá-los dos limites dessa legislação, prevendo que deverá dar-se “com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes” (art. 96, I, “a”). Seu problema é a disciplina da competência de seus órgãos internos, sejam eles jurisdicionais ou administrativos.
Dentro desse mosaico coloca-se o jurisdicionado, que não pode, entretanto, fazer uma exegese das diversas leis de modo simplista, apegando-se ao CPC, que sequer é a única legislação de processo, e só acorrendo às demais normas, na medida em que existam lacunas na legislação maior. Interpretação nessa linha não é correta: essa supõe prévio juízo acerca da legitimidade do órgão que editou a lei, de modo que se pode vislumbrar inconstitucionalidade ou incompatibilidade no CPC, por ter disposto sobre regra afeta aos outros investidos constitucionalmente do poder de legislar. Nesse sentido, uma norma estadual, versando sobre procedimento, pode revogar, no Estado em que foi emitida, uma previsão também de natureza procedimental do CPC, dada a competência concorrente deferida pela CF a ambos os entes para tratar da matéria.
O STF enfrentou, em seu Plenário, uma faceta dessa questão, suspendendo a vigência de artigo de Lei do Estado de Alagoas, que criou exigência de depósito prévio para recorrer de decisões proferidas nos Juizados Especiais Cíveis daquele Estado (MC na ADIN 4.161-4, rel. MENEZES DIREITO, DJe de 16.04.2009, página 33). Bem apartou o julgado o âmbito de cada legislação, firmando que “a exigência de depósito recursal prévio aos recursos do Juizado Especial Cível, criada pelo art. 7º da Lei Estadual (AL) n. 6.816/07, constitui requisito de admissibilidade do recurso, tema próprio de Direito Processual Civil e não de ‘procedimentos em matéria processual’ (art. 24, inciso XI, da CF)”. Não está em jogo, diante da questão, o curso do processo, mas o próprio direito processual de ter acesso aos órgãos superiores da jurisdição, que não pode ser dificultado, com ônus de que não cuida a regra processual.
Questão que versa sobre confronto entre a legislação processual e o Regimento Interno do STJ foi trazida à baila, por sua vez, no julgamento dos embargos de declaração nos embargos de divergência no recurso especial n. 509.827 (relator FERNANDO GONÇALVES, DJU de 01.04.2008), de vez que, no julgamento dos embargos de divergência, que teve sucessivos adiamentos, diante de pedidos de vista, acabou sendo considerado voto anteriormente proferido por ministro que, na sessão de encerramento da votação, já se encontrava aposentado.
Lembrou-se, então, ao questionar a validade daquele julgamento, em nome do devido processo legal, de que, nos órgãos colegiados, o julgamento somente termina com a proclamação do resultado final, antes do qual qualquer dos magistrados integrantes do órgão julgador pode voltar atrás, modificando seu voto. No caso, a situação era mais grave porque, diante da aposentadoria de um dos ministros, na decisão estava sendo computado o entendimento de alguém que, naquele momento, sequer possuía poder jurisdicional.
O colegiado, no entanto, prestigiou o texto do § 1º, do art. 162, do Regimento Interno, que determina: “o julgamento que tiver sido iniciado prosseguirá, computando-se os votos já proferidos pelos Ministros, mesmo que não compareçam ou hajam deixado o exercício do cargo, ainda que o Ministro afastado seja o relator”. O teor dessa norma colide com o sentido do julgamento colegiado, no qual o esclarecimento dos magistrados não advém somente das razões das partes e de sua convicção interior, mas também dos debates com e entre seus pares, do que se fica privado, na medida em que alguém deixa de participar dessas etapas, sequer por vontade própria.
Nada melhor é o que se encontra no inciso IX, do art. 202, do Regimento Interno do TJSP, que retira o direito do relator, que venha a proferir decisão monocrática, ter seu entendimento considerado como voto, no julgamento de agravos regimentais interpostos contra suas decisões (como se deu na decisão de agravo regimental, depois confirmado nos embargos de declaração n. 493.937-4/8-03, rel. BORIS KAUFFMANN, julgado em 07.04.2009). A par da inconveniência da regra, que retira do julgamento exatamente quem mais estudou a questão, preterindo-o em favor dos que meramente vão julgar por ouvir (são vogais), ela afronta o devido processo legal, que garante a higidez do órgão colegiado, a ponto de assim ter sido previsto ao se cogitar, expressamente, do agravo contra decisão que decida monocraticamente o agravo de instrumento (§ 1º, do art. 557, do CPC).
Há de se ter cuidado com o uso que se pode fazer da legislação sobre procedimento e dos regimentos de tribunais, a fim de que, a pretexto de estarem no gozo de competência legislativa deferida constitucionalmente, não venham comprometer direitos e garantias que devem ser tratados unicamente pelas leis de processo.

O Advogado e a Litigância de má-fé

11\05\2009

CLITO FORNACIARI JÚNIOR

 

Há dificuldade em se separar, nos processos, a figura da parte daquela do advogado, por não se mostrar uma nítida linha divisória entre aquilo que existe no processo como ocorrência real e efetiva dos atos e comportamentos da parte e o que a ele foi incorporado mercê do trabalho, da criatividade, da sensibilidade e até da marotice do profissional. Nesse sentido, julgados e, mais ainda, manifestações das partes, ou melhor, do advogado das partes, não são justos na separação das funções e assim agem intencionalmente para externar a idéia de que o quanto existe nos autos é só fruto de criação do profissional: seria coisa montada, sem compromisso com a verdade e não decorrência do natural dos acontecimentos.
Nesse sentido, antiga decisão do TJSP (apelação cível n. 614-4/7, rel. FRANCIULLI NETTO, acórdão publicado em 04.11.1996) imputou ao advogado do autor a fabricação de documentos e até mesmo a criação da ação promovida, que teria sido “antecipadamente preparada”, tachando-a, então, “de uma aventura mirabolante”, dizendo expressamente que “a presente ação não passa de uma aventura mirabolante engendrada pelo I. advogado do autor, muito provavelmente seu parente, e daí o seu interesse em obter a todo curso, o que a lei não permite”.
Em função disso, reconheceu o acórdão “manifesta litigância de má-fé” e condenou “o autor e seu patrono” ao pagamento de multa de 20%, com base no § 2º, do art. 18, do CPC, reconhecendo existir entre eles solidariedade, para o que se valeu do art. 32, parágrafo único, da Lei n. 8.906/94, que trata da demanda temerária. Foi admitido, contra aquele acórdão, recurso especial, que adentrou no STJ, em 1997.
Em 12 de agosto de 2008, foi, finalmente, o especial julgado, sendo que, no que tange à condenação do autor como litigante de má-fé, essa foi mantida, havendo só o ajuste de seu valor ao § 2º, do art. 18, do CPC, que manda ter por base o valor da causa, que não fora adotado no acórdão de São Paulo.
Quanto ao tópico em que discute a responsabilidade do advogado, que foi também condenado pelo acórdão, deu-se a ele provimento para afastá-la. Lembrou o julgado, relatado por LUIS FELIPE SALOMÃO (4ª Turma – REsp 140578, julgado em 12.08.2008, Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil, n. 57, p. 121), que o CPC também impõe deveres processuais aos advogados, mas prevê sanções somente às partes. Nessa linha, é de se ater ao fato de o art. 14 do CPC declinar, em seus incisos, deveres para as partes e para “todos aqueles que de qualquer forma participam do processo”, entre os quais estão também os advogados. Da mesma forma, o art. 15, cuidando do uso de expressões injuriosas, proíbe tal prática às partes e aos seus advogados.

A Hipoteca do Bem de Família

4\05\2009

CLITO FORNACIARI JÚNIOR

Com o advento da Lei n. 8.009, na qual se declarou impenhorável o imóvel residencial do devedor, deu-se a ele e a sua família uma proteção, que se desenhou ao legislador como indispensável para lhe garantir um mínimo de dignidade. Essa norma, de início, foi recebida com ressalvas, até porque originária de uma medida provisória (MP n. 143), que determinava sua aplicação imediata, inclusive a processos em andamento, portanto, conferindo-lhe efeito retroativo. No entanto, acabou, com o tempo, recebendo interpretação ampliativa. Imaginava-se, ao contrário disso, que fosse merecer, mesmo porque assim deveria ser, interpretação restritiva, dado que se apresenta como exceção à regra geral, que determina responda o devedor por suas dívidas com todos os seus bens presentes e futuros (art. 591 do CPC).
Dentro dessa linha, têm surgido questões que envolvem débitos de pessoas jurídicas e/ou imóveis escriturados em nome dessas, que, em princípio, estariam fora do âmbito de amparo da lei do bem de família, que assegura a pessoa física, logicamente.
Evidente que não se nega que a impenhorabilidade em tela pode ter como destinatária pessoa jurídica caracterizada como pequena empresa com conotação familiar (cf. REsp 470.893, rel. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJ 02/08/2006 p. 246). Por serem “empresas que revelam diminutos empreendimentos familiares, onde seus integrantes são os próprios partícipes da atividade negocial, mitigam o princípio societas distat singulis” (REsp 621.399, rel. LUIZ FUX, DJ 20/02/2006 p. 207). Neste processo, com esteio na posição de LUIZ EDSON FACHIN (Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, Renovar, 2001, p. 154), o STJ entendeu impenhorável imóvel pertencente à empresa e à família, no qual esta foi residir. 
O problema ganha outro contorno quando se está diante de empresas de maior porte, com maior complexidade e com sócios que se uniram somente pelo empreendimento em si e que, portanto, não demonstram qualquer vínculo suscetível de confundir a sociedade com suas famílias. 
O STJ tem enfrentado o assunto, em processos nos quais se realizam execuções hipotecárias que recaiam sobre imóvel dado em garantia, apesar de se cuidar da moradia da família do garantidor. Tratam os julgados da interpretação do inciso V, do art. 3º, da Lei n. 8.009, que, após prever como regra que “a impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza”, ressalva algumas situações, entre as quais coloca, no inciso V, a “execução de hipoteca sobre o imóvel, oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar”.
O inciso em questão não leva em consideração a origem da dívida, que não se permite seja paga com o bem de família, nem o credor dessa dívida. Diferente do que se dá com as exceções dos incisos I a IV, do art. 3º. Neles, à figura do credor se confere relevância, externando-se uma opção entre interesses que, em tese, estariam colocados no mesmo grau de importância. Assim, o bem de família deixa de ser protegido diante do crédito dos trabalhadores da residência, das contribuições previdenciárias desses, do credor do mútuo conferido à construção ou aquisição do imóvel protegido, do credor de alimentos e de impostos, taxas e contribuições que incidam sobre o imóvel familiar. O mesmo ainda se vê, em parte, no inciso VI, que não salvaguarda o bem na execução de sentença penal, que importa em indenização ou perdimento de bens. Nesses casos, a lei aferiu a proporção dos interesses e julgou mais justo proteger o credor que o devedor, mesmo se com isso ele perca o imóvel em que com sua família reside. Garante-se, dessa forma, proteção a um direito de igual ou maior relevância que aquele da moradia.
No caso da hipoteca, tal como, em certo sentido, no da fiança, a situação é outra. A exceção à impenhorabilidade decorre de se prestigiar o ato jurídico, a intenção do devedor, no sentido de outorgar em garantia o seu imóvel. Caso se lhe retirasse essa possibilidade, estaria sendo reduzido o seu poder sobre o imóvel, que delineia a propriedade e importa em se lhe permitir dela usar, gozar e dispor livremente, como prevê o art. 1.228 do CC. Por força disso, se faz possível conceder hipoteca, que, por sua vez, a Lei n. 8.009 tem como suficiente, por si só, para permitir que o imóvel, mesmo sendo bem de família, seja constrito em execução, com possibilidade, pois, de ser alienado em hasta pública.
Decisões do STJ, contudo, interpretam o inciso V, do art. 3º, da Lei n. 8.009, de modo a negar eficácia à hipoteca em si, nos casos em que recaia sobre bem de família do garantidor e com a qual se procura assegurar o cumprimento de dívida de pessoa jurídica.
Assim, passou aquela Corte a admitir ou não a penhora sobre o bem hipotecado, conforme o objetivo da garantia concedida. Restringiu-se, nesse sentido, a possibilidade de penhora apenas aos casos em que a dívida da pessoa jurídica garantida pela hipoteca tenha sido contraída a benefício da família do dono do imóvel. Mais do que isso: sustenta-se existir presunção de que a dívida não se prestou a essa finalidade, o que impõe a prova concreta de que houve o benefício (cf. AgRg no Ag 1067040, rel. NANCY ANDRIGHI, DJe 28/11/2008; REsp 303.129, rel. HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, DJ 16/04/2007 p. 201; AgRg no Ag 711.179, rel. HUMBERTO GOMES DE BARROS, DJ 29/05/2006 p. 235; REsp 302.186, rel. ALDIR PASSARINHO JUNIOR, DJ 21/02/2005 p. 182; REsp 302.281, rel. ALDIR PASSARINHO JUNIOR, DJ 22/03/2004 p. 310).
Cuida-se de mais uma interpretação ampliativa do bem de família, por conta de que esse haveria de proteger a família e não o direito de propriedade. Isso, no entanto, afeta a segurança dos negócios jurídicos, pois qualquer credor não terá certeza quanto à efetivação da garantia se dela, futuramente, vier a precisar.
Evidente que os outorgantes não poderão, em tese, sustentar sua ineficácia, pois estarão postulando contra fato próprio, o que não se permite. Mesmo assim, porém, o negócio fica sob risco, não só por esses poderem negar a liberdade na contratação, como também por seus filhos e demais moradores do imóvel terem direito à proteção, o que lhes confere a possibilidade de questioná-la.
Mais uma vez (cf., antes, noticiado no nosso Processo Civil: verso e reverso, Juarez de Oliveira, 2005, p. 207), é de se fazer o confronto entre teses dessa ordem, que dificultam a realização do direito material, e o desespero que se manifesta, em outras leis e em sua interpretação, quanto a se pregar, a qualquer custo, a agilidade para fazer efetiva a concretização do resultado do processo. O ponto de equilíbrio é de ser buscado e não pode prescindir de conferir seriedade e eficácia à manifestação das partes, ainda quando tenham sido feitas com segundas intenções.

Impugnação à nomeação e à gestão do inventariante

12\03\2009

CLITO FORNACIARI JÚNIOR

Já foi abordada, nesta página, a dificuldade que se tem quando a decisão de segundo grau desvia-se da questão que se põe no recurso, decidindo um suposto outro problema, que não aquele atacado. Isso acontece, por incrível que possa parecer, muito amiúde, tanto que se criou, em socorro ao vencido, a possibilidade do especial por afronta ao art. 535, II, do CPC, dado que, em última análise, o quadro que se revela mostra omissão, ao não se julgar o que é efetivamente objeto do recurso. A tanto se chega, pois não cabe ao STJ, em razão do âmbito do recurso especial, remontar os fatos do processo, reconstruindo a real controvérsia que se deduziu perante o Judiciário e que foi simplesmente ignorada. Assim, o objetivo do recurso passa a ser a anulação do julgado dos embargos de declaração, que é necessário, a fim de que possa ter lugar a apreciação da questão apresentada, o que imporá a volta dos autos à segunda instância para que, novamente, os embargos sejam decididos, encarando-se o que cumpria fosse enfrentado, desde então.
Situação que se adequa, claramente, ao quanto se expôs e que demonstra quão grave é a remontagem indevida da querela fática, encontra-se no acórdão resultante do julgamento do agravo de instrumento n. 390.562-4/0 pela Sétima Câmara de Direito Privado do TJSP, sendo o acórdão relatado, em 22 de março de 2006, por ARTHUR DEL GUÉRCIO. Nessa decisão, decidiu-se à luz das regras da remoção de inventariante, como se pedido de destituição fosse, recurso versando sobre a impugnação à sua nomeação.
Destaca-se, no relatório do acórdão, que “cuida a espécie de agravo de instrumento interposto contra decisão proferida em ação de inventário, que nomeou um dos herdeiros como inventariante, rejeitando impugnação feita pelos outros”. Todavia, quando da decisão, o acórdão invoca a possibilidade “que tem a parte interessada de a qualquer tempo solicitar a remoção do inventariante, caso existam motivos para tanto”, concluindo, posteriormente, que “a remoção não podia, como não pode ser decretada, já que não se configura a ocorrência de qualquer causa apta a tanto”. Misturaram-se, sem grandes cerimônias, dois institutos, que, de comum, só têm o ataque à figura do inventariante, mas por razões e em momentos diferentes. Não se deu conta o acórdão, embora a tanto fizesse menção em seu relatório, que o recurso era contra a nomeação do inventariante, que fora impugnada pelos demais herdeiros, valendo-se do quanto lhes confere o art. 1.000, II, do CPC. Desse modo, a decisão soa inconcebível, na medida em que submete a querela à previsão do art. 995 do CPC, dizendo que “sua remoção só se dará se ficar demonstrado, diante do contido no art. 995 do CPC, que o mesmo agiu de forma dolosa ou culposa em relação aos demais herdeiros, ou seja, se agiu de forma a prejudicar os demais interessados.” Uma coisa não tem nada com a outra: os atributos da nomeação do inventariante não consideram sua gestão, até porque a precedem; a má gestão, por sua vez, pode levar à remoção do inventariante, ainda que ele gozasse, quando nomeado, de todos os atributos para vir a ser guindado ao cargo.
A distinção dos dois institutos tem início no art. 990 do CPC, que arrola as pessoas que podem ser nomeadas inventariante, valorizando, em princípio, o parentesco e, mais do que isso, a continuidade da administração dos bens, tanto que confere preferência ao cônjuge sobrevivente, ao herdeiro que está na posse e administração dos bens etc. Apresenta, contudo, uma disposição de encerramento que permite a escolha de inventariante judicial ou de pessoa estranha, referindo-se, apenas, quanto a essa, ao atributo da idoneidade, que, expressamente, não é reclamado quando se trata de parente. Todavia, do silêncio quanto a esse requisito para os demais vocacionados ao cargo não se pode concluir que o está dispensando. Não fora assim, a lei vincularia sempre a escolha àqueles parentes, na rigorosa ordem do rol, independentemente dos atributos que pudessem possuir, que seriam, então, vistos como irrelevantes, sobrepondo-se a eles o vínculo em si.
Ao admitir que não se siga a ordem legal declinada, o que é questão, de longa data, assente, está a permitir a legislação, logicamente, que se questione cada um dos possíveis legitimados, que podem ser desconsiderados sempre que não preencherem o requisito que, com certeza, é o mais relevante para assumir o encargo, até porque foi o único enaltecido quando se cuidou de trazer terceiro alheio para o exercício da função. Destarte, o inventariante deve ser escolhido entre os que tenham honestidade, vendo, na previsão legal, a exigência de pessoa honesta e proba, conotação que empresta ao conceito DE PLÁCIDO E SILVA (Vocabulário Jurídico, Forense, 2a edição, 1967, 2o vol., p. 777), que o associa ao honesto, que caracteriza os de “bons procedimentos ou dos costumes e hábitos, que vêm segundo a moral” (p. 769). Relevante, portanto, é a qualidade da pessoa.
Ao julgar o recurso, entretanto, o acórdão dispensou a aferição desse requisito e deliberou manter o inventariante, mesmo com a oposição dos demais herdeiros e com a alegada desonestidade do nomeado, por entender que deve prevalecer a vontade do testador, por haver lhe confiado a administração dos bens, por estar na posse e administração da herança, por ter sido beneficiado com o testamento e nomeado testamenteiro, que são elementos não colocados como absolutos e irremovíveis, dado que a idoneidade sobre todos eles prevalece, sem qualquer margem de dúvida.
Diferentemente disso, o art. 995 do CPC, citado pelo acórdão, cuida dos casos de remoção de inventariante e coloca como justificativa para tanto motivos que demonstram a deficiente administração daquele, vindo a causar prejuízo ao espólio ou aos herdeiros. O acórdão, indevidamente, dela se valeu, alheio a que as duas situações, quais sejam, a enfrentada no recurso e a por ele decidida não são uma coisa só, demonstrando, dessa forma, inegável desrespeito ao art. 995, na medida em que foi utilizado indevidamente para decidir questão afeita à impugnação à nomeação do inventariante, que nada tem com a remoção, pois, enquanto esta afere a administração do inventariante, aquela avalia sua honestidade para o exercício do cargo, de modo que cada qual tem um regime próprio e eles não podem ser imiscuídos.
Nem sempre é tarefa fácil demonstrar o desvio de análise cometido pelo julgado, de modo a se ter clareza em dizer que a causa ou a questão do recurso não foi decidida, ocorrendo omissão no exame do quanto interessava. Da mesma forma, nem sempre é fácil desatar esse nó cego, pois a leitura da decisão, ou seja, da decisão da questão que não se pôs ao tribunal, poderá estampar um pronunciamento em si correto, tendo como defeito apenas o fato de nada ter com aquele processo, o que é simplesmente tudo, que cumpre ao Judiciário decidir.

A sentença como entrave à sua reforma

21\01\2009

CLITO FORNACIARI JÚNIOR

A atividade jurisdicional, como é por todos sabido, é demarcada pelas partes, sendo que o autor, ao ajuizar a ação, formula o pedido e declina a causa de pedir, que consiste nos fundamentos jurídicos, em razão dos quais deduz sua pretensão. Assim, cria para o juiz a obrigatoriedade de decidir nos limites em que a ação foi proposta, pois é defeso ao magistrado conhecer de questões não suscitadas (art. 128 do CPC).
O réu, se não oferecer reconvenção e só contestar, pode trazer fatos novos, impeditivos, modificativos e extintivos do direito do autor, e criar questões, na medida em que torne controvertidos pontos afirmados pela parte contrária. Essa atuação do réu não amplia o âmbito da demanda, embora exija maior trabalho do juiz. Nessa linha, continua o conflito restrito ao mesmo pedido e à mesma causa de pedir, mas impõe a decisão daquelas questões, a partir das quais pode vir a ser negado o direito postulado pelo autor. Só em caráter excepcional, embora crescente ultimamente, ao juiz se faz possível conhecer de ofício de questões que possam influenciar no julgamento da causa, uma vez que ainda se prestigia, entre nós, o princípio dispositivo.
Uma decisão que não se pronuncie, expressamente, sobre o pedido, a causa de pedir e as questões criadas pelo réu em sua defesa, padece de omissão, que pode e deve ser questionada por qualquer das partes por meio de embargos de declaração. Esses devem, destarte, ser acolhidos, a fim de ser sanado o vício, pronunciando-se o órgão julgador sobre o quanto não poderia ter sido desprezado.
Essa síntese da atividade jurisdicional também se manifesta no âmbito recursal, notadamente quanto ao recurso de apelação, em cujo julgamento é devolvido ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada, o que guarda paralelo com o pedido e a causa de pedir. Além da matéria impugnada, devolve-se ao tribunal, por expressa disposição legal, o quanto foi suscitado e discutido nos autos, mas não decidido e, ainda, os fundamentos não acolhidos, se um deles o foi, de modo que se mostrou suficiente para o acolhimento ou rejeição da demanda (art. 515, §§ 1º e 2º, do CPC). Essa demarcação da atividade jurisdicional em segunda instância, do mesmo modo que o pedido e a defesa, em primeiro grau, é de observância rigorosa, advindo decisão viciada sempre que o acórdão de segundo grau não apreciar o quanto foi impugnado e o quanto foi devolvido por decorrência das previsões dos parágrafos do art. 515.
Essas considerações, que soam elementares, vêm à mente diante de decisão proferida pela 33ª Câmara de Direito Privado do TJSP (apelação cível n. 1133991-0/2, rel. CLARET DE ALMEIDA, julgado em 14.08.08), que modificou decisão de primeiro grau, reformando a base de cálculo para a incidência de percentual de honorários advocatícios, simplesmente a pretexto de não ter sido impugnada pelo credor prova que justificaria, ao ver da turma julgadora, a adoção de outro critério, que não aquele que fora definido pela sentença.
Examinando-se a sentença (processo n. 00.562254-9, prolator ALEXANDRE AUGUSTO P. M. MARCONDES, 12ª Vara Cível de São Paulo, julgado em 02.05.07), por sua vez, verifica-se que a adoção da base reformada em segundo grau deu-se com fundamentos, que não foram, entretanto, refutados pelo acórdão, que simplesmente externou a sua posição, a pretexto de falta de impugnação da parte que veio a ser afetada com o decisório, do que não cogitara a decisão de primeiro grau.
A matéria decidida estava no âmbito de devolução ao juízo de segundo grau, de modo que cumpria, como ocorreu, ser reexaminada. No entanto, para redefini-la, competia ao acórdão deter-se sobre os fundamentos desenvolvidos pelo apelante como razões que, em seu entender, justificariam a alteração da sentença. O recurso é dirigido contra a sentença, de modo que o apelante precisa derrubá-la, ainda que não exista resistência da parte contrária. Portanto, ao colegiado cumpre, ao decidir o recurso, não só refutar os pontos aduzidos pelo recorrido, mas, antes e acima disso, afastar o entendimento externado pela sentença atacada, o que há de fazer, apontando em que medida o quanto ela colocou como decisão e fundamentos está errado.
Isso se põe, pois a sentença, pode dizer-se, defende-se sozinha, prescindindo até do ajutório que costuma vir nas contrarrazões de recurso, tanto que, se o recorrido não oferecer resposta, não se verifica o efeito reservado para a falta de contestação, ou seja, não se considera o quanto afirmado pelo recorrente como verdadeiro (cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, 5º vol., 14ª edição, 2008, n. 463, p. 253). Dessa forma, com ou sem resposta, cumpre ao julgador encarar o tema deduzido nas razões de recurso, confrontando-o, em primeiro lugar, com o que consta da sentença, que não pode ser desconsiderada.
O que a sentença lança como fundamento para o acolhimento ou rejeição do pedido é ponto de apoio da decisão, que lhe dá substância e amparo para sobreviver e que, portanto, precisa ser superado para que se possa inverter a deliberação. O confronto com o antes decidido deve ser externado na fundamentação do julgado, integrando sua motivação, na qual deve constar, como ensina OVÍDIO BATISTA DA SILVA, a tese aceita pela decisão, mas também as razões pelas quais foi recusada a versão oposta (“Fundamentação das sentenças como garantia constitucional”, Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, n. 10, p. 16), que, no caso, é também aquela abrigada pela sentença.
Não tendo sido demonstrados, no acórdão, os motivos pelos quais a sentença estava equivocada e, como tal, não poderia subsistir, justificam-se os embargos declaratórios, por  omissão (art. 535, II), mesmo que não tenha o recorrido assumido como seus os fundamentos da sentença. Evidencia-se também contradição, uma vez que o acórdão substitui a sentença no que tiver sido objeto de recurso (desde que acolhido). Assim, em se manifestando diferentemente quanto à decisão em si, mas não tratando de refutar os seus fundamentos, o acórdão não os substitui, pois, como bem coloca RICARDO APRIGLIANO, a parte da decisão de primeiro grau sobre a qual o tribunal não se manifestar permanece válida (cf. A apelação e seus efeitos, Atlas, 2003, p. 278). Desse modo, revela-se decisão contraditória, pois os fundamentos que não foram reformados persistem, embora não sirvam de amparo para a nova decisão, que neles não consegue sustentar-se.
A não ser sanado o vício, ou seja, em não rebatendo o acórdão os fundamentos da sentença, resta ensejo ao recurso especial por violação à regra do art. 535, II, pois a omissão se revela da mesma forma que se mostra quando fundamentos deduzidos pelas partes são desprezados.

Poder de Polícia

1\12\2008

CLITO FORNACIARI JÚNIOR

A possibilidade jurídica do pedido está colocada no CPC como condição da ação, de modo que representa um dos requisitos a ser implementado para que se obtenha pronunciamento jurisdicional de mérito. Há algum tempo, era a possibilidade entendida como a existência, em lei, de previsão para certos e determinados pedidos. Posteriormente, de modo correto, passou-se a entendê-la pelo prisma negativo, ou seja, vislumbrando-se a possibilidade sempre que o sistema, expressamente, não vedasse que algum conflito fosse trazido ao Judiciário.

Os doutrinadores sofreram rude golpe com a introdução do divórcio no Brasil e, ainda, com a permissão constitucional para que se demandasse sobre direitos suprimidos com base em atos institucionais. Assim, o exemplo que restou, como tábua de salvação, foi a proibição da cobrança de dívida de jogo, que representa não bem a impossibilidade do pedido, mas a impossibilidade da ação por conta da causa de pedir, pois a ação, no caso, é simples ação de cobrança, que proibida não é, passando a sê-lo tão só em razão de estar fundamentada em crédito obtido por vitória em jogo.

Essa colocação permite que se veja a impossibilidade jurídica do pedido, com maior largueza, deixando de se considerá-la somente no prisma estreito da vedação da formulação de determinados pedidos. Abrigo também nesse conceito possuem as pretensões deduzidas pela parte, que importem em constranger a demandada, se vencida for, a praticar ato que não poderia legitimamente praticar, pois, se o fizesse, acabaria cometendo ilegalidade. Não se confere, portanto, a possibilidade de propor ação, quando o resultado final pretendido em face do vencido não possa, legalmente, ser por ele atendido. Seria uma decorrência, no plano da teoria dos contratos, da exigência de que os negócios jurídicos tenham objeto lícito (art. 104, II, do CC), de modo que a ninguém seria dado intentar uma ação, objetivando compelir o réu a praticar um ato, cujo objeto seja ilícito, pois da mesma forma que não poderia gerar um negócio jurídico com esse elemento, com mais razão não o poderia obter valendo-se do mecanismo do Estado.

O Tribunal de Justiça de São Paulo proferiu decisão que bem se amolda à figura em questão (apelação n. 502.136.4/5, rel. ENCINAS MANFRÉ, julgado em 05.03.08), condenando a administradora de um shopping center a impedir a venda, exposição à venda, manutenção em depósito e ocultação de produtos falsificados, sob pena de arcar com multa diária. O acórdão faz referência ao fato de a administradora não comercializar no local, mas atribui-lhe culpa in omittendo e in vigilando, acerca da atuação dos lojistas com produtos contrabandeados ou falsificados, porque seria omissa diante dos ilícitos, faltando aos deveres de fiscalização e de vigilância, exigíveis nessas circunstâncias.

O quanto se atribuiu à administradora, sem dúvida alguma, não poderia dela ser exigido somente porque por ela não poderia ser atendido. Impôs-se à administradora uma atuação ilegal, enquanto pessoa jurídica privada, na medida em que teria de policiar, vistoriando os espaços cedidos aos locatários, depósitos de mercadorias, e, ainda, restringir direitos desses cessionários, realizando apreensões ou coisas dessa ordem, sem possuir autoridade para tanto. Transferiu-se, portanto, à administradora o exercício do poder de polícia. Todavia, ela não possui os necessários e competentes meios coercitivos, sem os quais o poder é um nada jurídico. A administradora, tal qual todos os particulares, não possui instrumental e nem tem o poder, ou seja, a possibilidade de impor a rendição aos supostos contraventores.

Deu-se um dever sem lhe municiar com o poder, contrariando aquilo que é específico do ente público que tem o dever exatamente porque tem o poder. Tanto é que bem explicita HELY LOPES MEIRELLES, dizendo que: “o poder tem para o agente público o significado de dever para com a comunidade e para com os indivíduos, no sentido de que quem o detém está sempre na obrigação de exercitá-lo” (Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 24ª edição, 1999, p. 90). A contrario sensu, destarte, quem não tem o poder, não tem e nem pode ter o dever. O exercício da obrigação que se lhe impôs é dos órgãos públicos de segurança, a quem compete coibir a prática de ilícitos dessa ordem.

Evidente que a administradora de centros comerciais tem responsabilidade de fiscalização do empreendimento, mas somente no seu conjunto, relativamente às áreas e coisas comuns, sendo natural que “este dever de vigiar o empreendimento como um todo não alcançará as lojas, no interior das quais reina já o seu locatário que exerce ali verdadeiro domínio.” (LADISLAU KARPAT, Shopping Centers – Manual Jurídico, São Paulo, Hemus, 1993, p. 141).

Só quem tem poder de polícia pode assim proceder, condicionando e restringindo, como diz HELY, o uso e gozo de bens, atividade e direitos individuais, pois somente o Estado possui poder de deter a atividade dos particulares que se revelar contrária, nociva ou inconveniente ao bem-estar social, ao desenvolvimento e à segurança nacional (obra citada, p. 115). Nesse sentido, em um país que consagra que nenhuma lesão será subtraída à apreciação do Judiciário (art. 5o, XXXV, da CF) e que veda, considerando crime, o exercício das razões por mão própria, não se compraz se imponha a um dos contratantes, em uma relação jurídica, como é aquela entre a administradora e os cessionários de lojas de um shopping, realizar seus direitos pela própria força, pois ela não possui o poder de frenar a atividade dos particulares, de vez que isso é lá com a Administração Pública e somente com ela. Um ato desses praticado por um dos contratantes contra outro denota clara exteriorização de abuso, visto pelo art. 187 do CC como ilícito.

Interessante constatar-se que, no campo da contrafação, existe legislação que define que procedimentos voltados à apreensão de produtos contrafeitos só podem existir mediante determinação de juiz de direito, sendo cumpridas por oficial do juízo ou por autoridade alfandegária (Lei n. 9.279/96). Da mesma forma, o STJ isentou o mero fabricante de CDs ditos piratas de culpa, pelo fato de não ter conferido, música por música, o conteúdo da mídia que lhe foi encomendada, uma vez que esse controle não está entre suas atribuições (REsp 979.379, rel. NANCY ANDRIGHI, julgado em 21.08.08, DJU de 05.12.08). Ambas as situações implicam a não transferência de obrigação ao particular que não a pode atender.

Portanto, questões dessa qualidade, tentando criar obrigação para quem não a tem e que, se por ela for atendida, importa em ilícito, evidencia impossibilidade jurídica do pedido, não porque o sistema veda a ação em si, mas porque a exigência não poderia ser feita a quem não goza do poder de coerção próprio das autoridades, imprescindível para que possa desvencilhar-se de obrigação de fiscalização.

Uma nova dimensão para o Recurso Especial

16\10\2008

CLITO FORNACIARI JÚNIOR

Sempre se entendeu como finalidade do recurso extraordinário a revisão da questão de direito federal decidida. Com a criação do especial, conferiu-se a esse o mesmo escopo, apartando-se um do outro apenas pela natureza das leis de que cuidavam. Apresentavam-se, pois, não como uma nova instância de julgamento das demandas, mas sim como um juízo que, nos limites da questão de direito federal, ensejava, na verdade, o julgamento do acórdão recorrido.

Possuem esses recursos efeito devolutivo limitado, diferentemente do que se passa com os demais, nos quais o âmbito de atuação do tribunal que os irá julgar é irrestrito, podendo avançar sobre questões de fato e de direito e, ainda, apreciar questões novas, notadamente relativas a matérias de ordem pública, nulidades insanáveis, vícios que não precluem. No especial e no extraordinário, a revisão opera-se somente sobre o quanto expressamente enfrentado pelo juízo ordinário. Ainda assim, reabre-se somente a matéria de direito, afastando as questões de fato (cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, 14ª edição, 2008, n. 324, p. 600). Além disso, necessário se faz que o tema jurídico objeto do recurso tenha sido previamente enfrentado pelas instâncias ordinárias (pré-questionamento), o que mais ressalta o aspecto de simples revisão, centrando o trabalho das instâncias superiores ao quanto consta do acórdão; nada além disso.

Essa estrutura bem exibia a superação das fases do processo, trazendo aos litigantes a sensação de que, quanto mais avançassem os recursos, mais restrita era a possibilidade de discussão do decidido, uma vez que, paulatinamente, ficavam os temas superados. No âmbito das questões de ordem pública, entre as quais se colocam aquelas que o legislador faz questão de afirmar que podem ser alegadas a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição (v.g., arts. 267, § 3º, 301, § 4º, do CPC), era uníssona a posição segundo a qual a alegação da novidade era restrita às instâncias ordinárias, como também o seu conhecimento de ofício, de modo a não poder ser enfrentada nos tribunais superiores, salvo, obviamente, se fosse ela a questão contra a qual se recorria. Isso se verificava quer no recurso extraordinário, quer no especial.

De uns tempos a esta parte, começou a se aventar, quanto ao recurso especial, a dispensa do pré-questionamento das questões de ordem pública (cf. ROGÉRIO LICASTRO TORRES DE MELLO, “Recurso especial e matéria de ordem pública: desnecessidade de prequestionamento”, Recurso especial e extraordinário, Método, 2007, p. 231 e segs.), o que importaria na possibilidade de a parte, sentindo-se prejudicada com a decisão de segunda instância, alegar, em primeira mão, matéria de ordem pública que não havia, anteriormente, sido discutida e decidida. Admitiu-se que isso viesse a ocorrer (entre outros REsp 856.929, rel. ARNALDO ESTEVES LIMA, julgado em 04.08.2008), afetando-se o âmbito do recurso, pois estava sendo “devolvida” às instâncias superiores questão não decidida nos graus de jurisdição ordinários, rompendo-se, destarte, com um desenho sedimentado daquele recurso e que para ele foi transferido a partir de como se entendia o extraordinário.

O problema, todavia, recebeu ainda outro contorno, vindo a admitir-se conhecimento de ofício pela Corte Superior de questões de ordem pública antes sequer apreciadas (cf., amparado em outros precedentes, REsp 869.534, rel. TEORI ALBINO ZAVASCKI, julgado em 27.11.2007, Revista Dialética de Direito Processual, 60/142). Consta do acórdão citado que “superado o juízo de admissibilidade, o recurso especial comporta efeito devolutivo amplo, já que cumprirá ao Tribunal ‘julgar a causa, aplicando o direito à espécie’ (art. 257 do RISTJ; súmula n. 456 do STF)”. Assim, estaria sendo aplicado o que a doutrina denomina efeito translativo, que admitiria ao órgão julgador conhecer de ofício das questões de ordem pública.

Essa posição rompe com o modo como sempre se entendeu o âmbito dos recursos especial e extraordinário, dado ser deferido aos tribunais superiores o exercício tão só de um juízo de revisão do decidido e do recorrido. Admitir-se a provocação do tema só na instância superior transige com o decidido, admitindo recurso sobre tema não versado na decisão; a admissibilidade de exame de ofício da matéria, por sua vez, rompe tanto com a restrição do recurso ao decidido, como também com a limitação do conhecimento da Corte ao recorrido.

Não se pode sustentar que isso está admitido pelo tal efeito translativo, pois dele a legislação não cuida, sendo criação da doutrina, a partir da constatação de que, algumas vezes, o legislador permite conhecimento de ofício, em qualquer grau, de questões antes não trazidas à baila. Essa previsão está no sistema de longa data e, anteriormente, nunca se cogitou de aplicá-la ao extraordinário e ao especial, não havendo justificativa para a releitura da regra, depois de estar sedimentada a estrutura do recurso. Menos ainda é de se inovar, ampliando o recurso, na contramão, pois, atualmente, pugna-se pela restrição à recorribilidade, para o que ideal é o fechamento, o quanto antes, das questões pendentes em juízo.
Ademais, como o processo civil ampara-se no princípio dispositivo, correto é interpretarem-se restritivamente as regras que admitem atuação oficiosa do juízo, ao que se chegaria, no caso, mercê da natureza dos recursos excepcionais.

De outro lado, a ideia franqueia o risco da reformatio in pejus, na medida em que aquele que venceu apenas parcialmente e busca uma vitória completa, pode, sem recurso do vencido, perder o que conseguiu, se a tanto se chegou sem atinar-se para vício formal ou questão de ordem pública, que poderia, por exemplo, ter conduzido o processo à extinção sem julgamento de mérito.

Sem dúvida, o Regimento Interno do STJ e a súmula 456 do STF não conduzem a tanto, pois não autorizam a rejulgar a causa. Fosse assim, teria que se admitir que ela reapreciasse também as questões que não são de ordem pública, proferindo julgamento inteiro. Eles permitem somente, com bem coloca BARBOSA MOREIRA, julgar a matéria objeto da impugnação (Comentários, n. 324, p. 604).

Custa crer que, em momento em que se reclama da instabilidade que atinge as questões submetidas à Justiça e se propugna pela restrição à recorribilidade, venha admitir-se um reexame total quanto a questões que nem aos próprios contendores afigurou-se interessante enfrentar. O mero risco de futura rescisória não é suficiente para se escancarar o especial.

De qualquer modo, com essa amplitude de julgamento, em definitivo, transforma-se o STJ em uma terceira instância, arranhando sua real importância, qual seja, a de ser intérprete final das leis federais, função sem dúvida de maior gabarito, se não para ele, para todos quantos buscam maior segurança no sentir e entender o Direito.

Cartão de Crédito – Responsabilidade Civil

3\10\2008

CAROLINA DE CARVALHO GUERRA

De uns tempos a esta data, a disseminação do uso do cartão de crédito e o notório aumento da criminalidade fizeram com que a discussão acerca da responsabilidade civil decorrente do furto, roubo, extravio ou da perda de cartão de crédito se tornasse mais exacerbada, sobretudo no tocante à validade da limitação contratual imposta pelas administradoras relativamente à sua responsabilidade pelas despesas incorridas por terceiros até a comunicação do fato pelo consumidor.

Embora a questão, de início, tenha se mostrado bastante controvertida, sempre se sinalizou o entendimento de que a conferência da assinatura do portador do cartão, no momento da compra, era providência que se fazia necessária, até pelo fato de a própria administradora ditar, em seus contratos, que a manifestação de vontade do responsável pelo cartão se exprime pela sua assinatura no ato da compra.

Seguindo essa linha, a jurisprudência traz alguns julgados recentes nos quais o tema foi enfrentado com bastante clareza. Na esfera paulista, a 34ª Câmara da Seção de Direito Privado do Tribunal de Justiça, ao decidir a Apelação n. 892.332-0/1 (relatora Des. Cristina Zucchi, julgado em 14/03/07), assentou que a força vinculante decorrente da cláusula que responsabiliza exclusivamente o consumidor pelas despesas incorridas no cartão até a comunicação do fato deve ser mitigada em vista do caráter protetivo das normas consumeiristas, na busca do equilíbrio que deve existir entre os contratantes. Entendeu o julgado que referida disposição há de ser considerada nula porque coloca o consumidor em desvantagem excessiva e milita contra a boa fé e a equidade, pois as administradoras e os vendedores têm o dever de apurar a regularidade no uso dos cartões que emitem e cujas compras autorizam, não podendo o consumidor ser responsabilizado pelo seu uso indevido por terceiros.

Também a 32ª Câmara da Seção de Direito Privado do Tribunal de Justiça, no recente julgamento da Apelação n. 923.468-0/6 (relator Des. Walter César Exner, julgado em 05/06/08), seguiu nesse mesmo sentido, atestando a nulidade da cláusula limitadora de responsabilidade e destacando que a utilização fraudulenta do cartão de crédito por terceiro demonstra que o serviço prestado pela administradora é falho, não oferecendo a devida segurança ao consumidor, a quem a responsabilidade pelas despesas daí decorrentes deve ser imputada. Considerou o acórdão ser a administradora a guardiã das informações pessoais dos seus clientes e quem disponibiliza a terceiros o acesso ao crédito que a eles concede, no momento em que autoriza as transações efetuadas, incumbindo a ela, por essa razão, exigir dos estabelecimentos que credencia a correta capacitação de seus prepostos, para que as compras efetuadas por meio do cartão sejam seguras, com a conferência da assinatura do portador no momento da compra, a fim de que não se permita que terceira pessoa, de posse indevida do cartão, empreenda compras no comércio mediante a aposição, nos comprovantes, de assinatura falsa.

Pauta-se o citado julgado em decisão também bastante recente emanada pelo Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Recurso Especial n. 348.343-SP (relator Min. Humberto Gomes de Barros), que assenta com rigor o entendimento de que referida estipulação contratual é nula e que não pode a administradora furtar-se da responsabilidade que recai sobre si pela utilização fraudulenta do cartão de crédito por ela emitido e administrado, em vista da não conferência da assinatura do portador, no ato da compra.

O encaminhamento da jurisprudência traz tranquilidade ao titular do cartão, pois só responderá pelas compras que efetivamente fizer e não por aquelas que foram feitas por alguém que usou seu cartão; impõe, de outro lado, aos estabelecimentos que operam com cartão o ônus de conferir se quem dele está se utilizando é realmente o seu titular, pois os encargos suportados pelas empresas de cartão deverão ser repassados aos comerciantes, que não tiveram esse elementar cuidado de conferir a quem estavam vendendo.

Ainda o Protocolo Integrado para o especial

26\09\2008

CLITO FORNACIARI JÚNIOR

Já foi por nós abordado (Suplemento n. 116, dez/2004, p. 461) o problema do protocolo integrado perante o STJ. Naquela feita, destacou-se a mudança na redação do art. 542 do CPC, que excluiu expressão que constava de seu final, dizendo “e aí protocolada”. Essa indicação do local do protocolo impunha, com razão, que a petição do especial e também do extraordinário fossem apresentadas no próprio tribunal recorrido, de modo a não se considerar tempestivo o recurso recebido pela secretaria fora do prazo legal, embora apresentado dentro dele em algum dos protocolos do Judiciário local.

Não bastasse isso, a Lei n. 10.352/01 introduziu parágrafo único ao art. 547, dando foros de legalidade à salutar prática de descentralizar os serviços de protocolo, legitimando e, com certeza, estimulando a sua instituição, ao prescrever que “os serviços de protocolo poderão, a critério do tribunal, ser descentralizados, mediante delegação a ofícios de justiça de primeiro grau”. A criação do sistema integrado de protocolo é da competência do Tribunal local, mas tem o aval expresso de lei federal, para fins de aferição de cumprimento de prazos.

Destacou-se, naquelas notas, por fim, que esse avanço do CPC, facilitando o trabalho do advogado e eliminando uma autêntica armadilha, não encontrava eco no STJ, que acabava, então, de referendar (Questão de Ordem no Agravo de Instrumento n. 496403, rel. FERNANDO GONÇALVES, julgada em 19.05.2004) o teor e a vigência de sua súmula 256, que entendia que o expediente do protocolo integrado não era aplicável aos seus recursos.

Passados quase quatro anos e, com certeza, depois de algumas centenas de recursos terem sido prejudicados, é de se retomar o assunto, lamentavelmente, para enfatizar que a posição do STJ continua a mesma, enfatizando a sobrevivência da súmula, em que pesem o art. 542 e o parágrafo único do art. 547 do CPC. Nesse sentido, estão, entre tantos outros, os seguintes julgados, que são os dez mais recentes, tendo sido o mais recente deles publicado no DJU de 03.03.2008: AgRg no Ag n. 984.640, rel. FERNANDO GONÇALVES; AgRg no Ag n. 985.239, rel. FERNANDO GONÇALVES; AgRg no Ag n. 769.951, REL. SIDNEI BENETI; AgRg no Ag n. 745.362, rel. SIDNEI BENETI; AgRg no Ag n. 881.281, rel. JOÃO OTÁVIO NORONHA; AgRg no Ag n. 876.551, rel. JANE SILVA (convocada); AgRg no Ag n. 951.748, rel. CASTRO MEIRA; AgRg no Ag n. 941.216, rel. JANE SILVA (convocada); AgRg no Ag n. 890.598, rel. HÉLIO GUAGLIA; AgRg no Ag n. 951.324, rel. LUIZ FUX.

A posição do STJ tarda a mudar, pois não há como se negar a permissão do CPC ao protocolo integrado e, em especial, sua utilização para interposição dos recursos extraordinário e especial. Esse descompasso fica mais injustificável, na medida em que, atualmente, são admitidos recursos por meios eletrônicos, sem embargo de a questão nem mesmo precisar chegar ao âmbito dos tribunais superiores, pois o órgão receptor do recurso, no caso, o tribunal local, é que teria condições de dizer onde está o seu protocolo, podendo vê-lo não só na sua secretaria, como em qualquer canto, no qual exista máquina ou carimbo, em condições de certificar o que e quando lhe está sendo apresentado um documento.

Alentador é observar-se que a posição do STJ vai ficando isolada, pois o STF, que resistiu e muito ao reconhecimento do protocolo integrado, modificou seu entendimento e, em decisão por unanimidade do seu Pleno, sacramentou: “A Lei n. 10.352, de 26.12.01, ao alterar os artigos 542 e 547 do CPC, afastou o obstáculo à adoção de protocolos descentralizados. Esta nova regra processual, de aplicação imediata, se orienta pelo critério da redução de custos, pela celeridade de tramitação e pelo mais facilitado acesso das partes às diversas jurisdições. Agravo regimental provido para determinar a subida do recurso extraordinário e assim possibilitar melhor exame do feito” (AI-AgR 476260, rel. CARLOS BRITO, DJU de 16.06.06, p. 5).

Essa diversidade de posições justifica a interposição contra a decisão do STJ de recurso extraordinário, de modo a buscar-se o reconhecimento de afronta à Constituição Federal, que viabilizaria o especial. Para tanto, três aspectos, que, em tese, seriam óbices a esse suposto recurso, devem ser superados. Em primeiro lugar, a divergência quanto à interpretação do direito não é fundamento para extraordinário; em segundo lugar, entende-se não ser cabível extraordinário contra decisões do STJ; em terceiro lugar, não há preceito expresso da Constituição contrariado, pois esta não trata particularmente do assunto. Todavia, ainda assim, o recurso é pertinente.

Por primeiro, a simples divergência de decisões quanto à interpretação do direito não ensejaria o recurso, pois essa é hipótese pertinente somente ao especial (art. 105, III, c). A interposição deve dar-se, então, por contrariedade a dispositivo da Constituição (art. 102, III, a), sendo, ainda, necessária a demonstração da “repercussão geral” da questão, como exige o § 3o, do art. 102, da CF.
Em segundo lugar, não se pode negar o extraordinário por se atacar, por meio dele, uma decisão do STJ. A restrição que se coloca quanto a esse cabimento confina-se aos casos em que o desrespeito à Constituição Federal evidenciou-se na decisão local, o que imporia a dedução simultânea do especial e do extraordinário, que ficaria sobrestado até o julgamento daquele. No caso, a afronta à Lei Maior manifestou-se pela primeira vez na decisão do STJ, de modo que perfeitamente justificável o seu ataque pelo extraordinário.

Por fim, não havendo preceito específico sobre a matéria de que se trata, o resguardo deve dar-se aos princípios constitucionais, embora esses sejam apenas ponto de partida que deixam de ter relevância, na medida em que o legislador ordinário já os materializou em lei. O socorro a eles, todavia, é possível, pois a sua vigência, como ensina JOSÉ PUIG BRUTAU, pressupõe a possibilidade de que se apresente problemática ou que seja notoriamente injusta a resolução de algum conflito (A Jurisprudência como fonte do Direito, Porto Alegre, Ajuris, 1977, p. 184), como, no caso, é evidente.
A decisão do STJ, sem dúvida, afronta, no mínimo, dois princípios constitucionais: o do devido processo legal, pois nada mais legal é o processo trilhar sob a égide da lei que o disciplina, que, no caso, admite e enaltece o protocolo integrado. De outro lado, fere-se a garantia do pleno acesso ao Judiciário, que se faz com os meios e recursos previstos em lei (art. 5o, LV), e a forma de interposição do recurso cerceado está na lei, tornando flagrante a sua desconsideração.

A resistência do STJ é reforço à armadilha: a lei diz o contrário e o protocolo, na sua cidade, está à disposição para receber o recurso. Passado algum tempo, vê o recorrente que está em um alçapão e dele não tem como fugir, pois nem o recorrente e nem o operador do protocolo fizeram a mesma leitura que o STJ faz da lei.

Âmbito do Juízo de admissibilidade dos Recursos Excepcionais

26\09\2008

CLITO FORNACIARI JÚNIOR

SUMÁRIO: 1. Paralelo entre o direito de ação e o direito de recorrer – 2. Pressupostos intrínsecos de admissibilidade do recurso – 3. Pressupostos extrínsecos de admissibilidade do recurso – 4. Fatos impeditivos e extintivos do direito de recorrer – 5. Pressupostos genéricos de admissibilidade do especial e do extraordinário – 6. A especificidade dos requisitos de admissibilidade dos recursos extraordinário e especial – 7. O juízo de admissibilidade – 8. Da separação entre o juízo de admissibilidade e o juízo de mérito – 9. Pressupostos específicos de admissibilidade do extraordinário – 10. Pressupostos específicos de admissibilidade do especial.

1. Paralelo entre o direito de ação e o direito de recorrer. A ação representa o meio legal de se reclamar do Poder Judiciário a solução de um conflito de interesses. Depende, fundamentalmente, da atuação da parte, que, mercê de um ato de vontade, dá início ao processo, fixando, igualmente, os limites da atuação do juiz, que não poderá decidir nem além, nem aquém e nem fora daquilo que lhe foi pedido. É, portanto, uma manifestação do princípio dispositivo, impedindo, em contrapartida, a instauração de processo de ofício.

Esse mesmo arcabouço apresenta-se no que diz respeito ao recurso , que se coloca como o meio de impugnar, dentro da mesma relação processual , uma decisão, a fim de que seja reapreciada pela mesma ou superior instância, objetivando anulá-la, reformá-la ou aclará-la. É também um ato de vontade da parte, ficando sujeita à sua iniciativa a manifestação do inconformismo diante do decidido, delimitando, em princípio , o âmbito de atuação do órgão ad quem, o que se faz, portanto, também com amparo no princípio dispositivo.

Tanto diante da propositura de ação, como da dedução de recurso, não se cria para o Judiciário a obrigação de resolver a questão que se lhe está sendo apresentada. Nem sempre a ação terá seu mérito apreciado, como também, nem sempre, a irresignação da parte contra uma decisão será julgada, em seu merecimento. Impõe-se ao juízo, isso sim, uma resposta, mas que pode ser no sentido de não existir direito de obter a solução da questão ou a revisão do que antes fora decidido.

A não apreciação do mérito da ação e do recurso ocorrerá sempre que não se conseguir superar o juízo de admissibilidade, que se põe tanto para a ação, como para o recurso . O juízo de admissibilidade marca-se, pois, como um momento processual, no qual são apreciados os requisitos formais de admissibilidade da ação ou do recurso e que guarda uma prioridade lógica, em relação ao mérito, embora, em termos de importância, é inegável que lhe sobrepuja a questão de mérito, com cujo julgamento se afere a procedência ou improcedência da postulação .

Quanto à ação, os requisitos de sua admissibilidade, viabilizando, portanto, o julgamento de mérito, são os pressupostos processuais e as condições da ação. Vícios relativamente a esses institutos geram a impossibilidade de julgamento de mérito, autorizando o indeferimento liminar da inicial ou, então, a extinção do processo sem julgamento de mérito (art. 267 do CPC), caso já superada aquela etapa inicial.

No que tange aos recursos, sempre se guardando paralelo com o direito de ação, o juízo de admissibilidade é mais amplo e, segundo BARBOSA MOREIRA, compreensivelmente mais rigoroso, até por estar havendo um funcionamento suplementar da máquina judiciária . Envolve aspectos positivos, subdivididos em intrínsecos e extrínsecos, e negativos . Os primeiros devem estar afinados ao recurso, fazendo-se presentes, adequadamente; já os segundos não devem ter ocorrido, sob pena de inviabilizado restar o exame da questão devolvida para reexame por força do recurso.
A superação desses aspectos de natureza eminentemente formal possibilitará a obtenção da apreciação do recurso pelo órgão ao qual se destina, que, então, emitirá juízo acerca de seu mérito. Caso se apresentem vícios relativamente a esses aspectos, o recurso não será conhecido, ficando, portanto, mantida a decisão contra a qual ele fora interposto.

2. Pressupostos intrínsecos de admissibilidade do recurso. Consideram-se pressupostos intrínsecos de admissibilidade do recurso requisitos que decorrem do recurso em si e que lhe são particulares. Revelam-se como o seu cabimento, a legitimação e o interesse em recorrer.

Nessa linha, as decisões, em regra, são recorríveis, não o sendo os despachos (art. 504), nem algumas poucas decisões expressamente referidas pelo sistema processual, como se dá com a previsão do parágrafo único, do art. 527 do Código de Processo Civil. Todavia, exige-se previsão legal do recurso pelo sistema jurídico e pertinência entre a decisão proferida e o recurso interposto, falando NELSON NERY JÚNIOR em recorribilidade e adequação .

Não se adota a indiferença quanto à forma do recurso, mas sim sua rigorosa harmonização com o remédio utilizado, que, se não observada, inviabiliza o exame da impugnação. Assim, a sentença é apelável; a decisão interlocutória é agravável; as decisões dos tribunais, por maioria de votos, que reformem a sentença de primeiro grau ou julguem procedente a rescisória, são atacáveis por embargos infringentes. O uso de um recurso por outro, em princípio, impede o seu conhecimento, sendo caso de se lhe negar seguimento, salvo configurando-se caso de dúvida objetiva, que renderia, então, oportunidade à aplicação do princípio da fungibilidade, que, no Código de Processo Civil de 1.939, era objeto de disciplina legal expressa (art. 810).

De outro lado, o recurso só pode ser interposto por quem guarda legitimidade para tanto, consoante a regra do art. 499 do Código de Processo Civil. Nessa linha, o primeiro legitimado é a parte vencida, entendida como tal a que obteve menos do que poderia conseguir no processo e, com isso, saiu prejudicada com a decisão, em vista do acolhimento da demanda de seu adversário . O Ministério Público, como parte ou fiscal da lei, e o terceiro prejudicado, desde que demonstre o nexo de interdependência do seu interesse em intervir e a relação jurídica submetida à apreciação do Judiciário, também podem deduzir seu recurso.

Ademais, exige-se o interesse em recorrer, representado pela necessidade do recurso e pela insatisfação quanto ao resultado obtido , oferecendo-se o recurso a fim de que se possa tentar conseguir resultado melhor do que aquele alcançado na decisão atacada, medindo-se o resultado pelo efeito prático da decisão . Há, pois, de se considerar a diversidade entre a decisão pedida e a conseguida .

SALVATORE SATTA destaca que o que faz surgir o interesse é a sucumbência, de modo que a procura do interesse se resolve sempre na procura da sucumbência . MATTEIS DE ARRUDA vê nessa necessidade do recurso a idéia de ônus, pois a parte não precisa recorrer, mas precisa fazê-lo a fim de que possa obter uma vantagem ou afastar uma desvantagem . Guarda paralelo, pois, com o interesse de agir, que existe, como condição da ação, sempre que se torne necessário o acesso ao Judiciário pela falta de outro remédio eficaz para resguardar o direito de quem se julgue prejudicado .

Esses elementos devem estar atendidos para o recebimento do recurso, bem como para seu posterior conhecimento, aferindo-se a sua regularidade no exame do remédio deduzido em confronto com a decisão combatida, dizendo-se, portanto, intrínsecos, pois a certificação de sua regularidade faz-se a partir da impugnação, estando ligados ao direito de exercê-la.

3. Pressupostos extrínsecos de admissibilidade do recurso. Igualmente o recorrente deve atender aos chamados pressupostos extrínsecos de admissibilidade do recurso, que são elementos que se colocam fora da impugnação em si, atrelando-se ao modo de se exercê-la , sem o atendimento dos quais, da mesma forma, o recurso não poderá prosperar e muito menos colher êxito.

Cada qual, no entanto, atende às particularidades do rémedio que está sendo interposto, podendo, inclusive, em algumas hipóteses, ser dispensável.

Assim, em termos genéricos, podem ser considerados pressupostos extrínsecos de admissibilidade a tempestividade, o preparo, envolvendo pagamento de custas e portes, quando exigidos, e a regularidade formal do recurso, da qual a norma processual trata em duas linhas diferentes. Assim, pode o Código exigir interposição escrita, como se verifica com a maioria dos recursos, ou oral, como, às vezes, é permitido e outras, obrigatório, como se dá com o agravo retido deduzido contra decisão proferida em audiência de instrução (art. 523, § 3º, do CPC). Essas exigências são de observância compulsória sob pena de não conhecimento. De outro lado, o Código também faz a indicação de um verdadeiro roteiro da impugnação, como se verifica com a apelação (art. 514), o agravo de instrumento (art. 524), o recurso especial e o extraordinário (art. 541). É certo que soa apego exagerado à forma a não admissibilidade do recurso, por conta da inobservância do plano indicado como roteiro pelo legislador, devendo entender-se como cumprida a regra com o simples preenchimento dos requisitos minimamente necessários à demonstração do inconformismo.

4. Fatos impeditivos e extintivos do direito de recorrer. Por fim, a admissibilidade do recurso poderá restar comprometida por atos da parte, que impedem o seu recebimento ou o seu julgamento. São os pressupostos negativos que BARBOSA MOREIRA coloca como fatos impeditivos e extintivos do direito de recorrer, tratando-os também como pressupostos intrínsecos de admissibilidade .
Põem-se como óbices ao conhecimento do recurso a aceitação tácita da decisão, decorrente de comportamento da parte no processo ou fora dele (art. 503, parágrafo único, do CPC) , a aceitação expressa (art. 503 do CPC), manifestada nos autos, a renúncia ao direito de recorrer (art. 502 do CPC), quase sempre lançada como cláusula de transações judiciais, e a desistência do recurso (art. 501 do CPC), pressupondo-o, assim, já interposto.

Qualquer dessas ocorrências importará em fazer com que a decisão que se pretendia ver modificada reste definitiva, transitando, assim, em julgado, exatamente nos termos em que foi lançada originariamente, nada acrescentando à decisão antes prolatada o ato da parte e a sua necessária homologação judicial.

5. Pressupostos genéricos de admissibilidade do especial e do extraordinário. Evidente que os recursos excepcionais, entendidos assim o especial (art. 105, III, da CF) e o extraordinário (art. 102, III, da CF), devem, por igual, atender aos requisitos antes explicitados, sob pena de não poderem ser admitidos, inviabilizando a apreciação de seu merecimento.

Invertendo-se a ordem de exame, impedem, logicamente, o conhecimento do especial e do extraordinário a aceitação, expressa ou tácita, da decisão, a renúncia ao direito de recorrer e a desistência do recurso. Da mesma forma, sujeitam-se esses meios de impugnação ao preparo, à observância de sua regularidade formal, minudentemente demarcada pelo art. 541 do Código de Processo Civil, e devem ser apresentados no prazo legal, podendo ocorrer isso conjuntamente, nos casos em que decisão de tribunal contenha matéria de lei federal e constitucional, nada impedindo, contudo, a interposição isolada, somente de um deles, desde que se subsuma a decisão aos requisitos de um dos remédios apenas.

Por igual, os recursos somente podem ser apresentados pelos legitimados (art. 499 do CPC), desde que demonstrem interesse em recorrer.

6. A especificidade dos requisitos de admissibilidade dos recursos extraordinário e especial. O requisito do cabimento do especial e do extraordinário justificam um destaque, pois, diferentemente dos recursos que podem ser vistos como ordinários, o cabimento desses não se afere somente em razão da decisão vista formalmente, não bastando, outrossim, o simples inconformismo da parte vencida.

O cabimento da apelação, por exemplo, se dá diante da prolação de uma sentença, considerada formalmente, independentemente de seu conteúdo, da natureza e das razões do inconformismo da parte vencida. Desse modo, pode atacar-se sentença, valendo-se do apelo, apontando-se para vícios formais dessa ou do procedimento, discutir fatos, interpretação do direito etc., ensejando, portanto, um âmbito de devolutividade total . São o ato judicial e o fato objetivo da derrota que ensejam a impugnação, diferente de outros recursos que exigem um motivo específico .

O mesmo, todavia, não se oferece com os recursos especial e extraordinário, relativamente aos quais a possibilidade de interpor recurso não se afere pelo simples ato formal anterior, que será atacado, e nem pelo mero inconformismo com o que nele ficou decidido. O requisito do cabimento acaba ficando atrelado ao conteúdo próprio da decisão. Nessa linha, se a decisão foi desfavorável por força da interpretação dada à prova ou, então, por força do entendimento acerca de uma lei local, não se abrirá a possibilidade para os recursos especial e extraordinário, que têm requisitos de cabimento delimitados pela natureza da questão enfrentada na decisão proferida, não se permitindo, portanto, um debate amplo acerca de todas as questões decididas no grau de jurisdição anterior.

JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA trabalha com essa distinção, tratando os primeiros recursos como de fundamentação livre e os segundos, como de fundamentação vinculada, para os quais a parte tem que invocar o erro indicado pela lei e visto como relevante e imprescindível para que o recurso caiba, sendo esse erro a tipicidade, que se coloca como pressuposto de cabimento do recurso. Quanto ao recurso de fundamentação livre, qualquer divergência pode ser invocada, pois a lei se absteve de fixar limites para a crítica da decisão .

Há, ainda, posições doutrinárias que também levam a essa conclusão, mas que valorizam o objeto do recurso, vendo alguns como destinados à proteção do direito subjetivo, enquanto outros, como o especial e o extraordinário, ao resguardo do direito objetivo, apesar de, reflexamente, protegerem também o direito subjetivo , pois ninguém interporia um recurso só para a discussão do direito em tese, sem que daí pudesse ter a oportunidade de colher uma melhora em sua situação processual. SATTA vê nessa distinção apenas uma justificativa política para o recurso, que não deixa de ser um recurso do sucumbente .

Por esse enfoque, o recurso extraordinário é cabível, conforme o art. 102, inciso III, da Constituição Federal, contra decisão de causas, em única ou última instância, que contrarie a constituição; declare a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; julgue válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição Federal; e julgue válida lei local contestada em face de lei federal.

A Emenda n. 45 acresceu a esses requisitos, introduzindo o § 3º, ao art. 102, da Constituição , a necessidade de demonstrar “a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso”, que passou a ser um pressuposto do extraordinário cumulativo a qualquer dos demais, tal como, na vigência da Constituição de 1.967, ocorria com a relevância da questão federal.

A mesma idéia, qual seja, a de voltar-se contra decisão última na chamada instância ordinária, faz-se presente quanto ao cabimento do recurso especial, só que se acrescenta como regra geral a todas as hipóteses de cabimento a circunstância de se cuidar de decisão de Tribunais Regionais Federais ou Tribunais dos Estados, Distrito Federal e Territórios.

A distinção que, neste ponto, se põe entre o especial e o extraordinário não implica a admissão do recurso per saltum. Ambos os recursos somente podem ser deduzidos com o esgotamento das instâncias inferiores. Desse modo, mesmo que a primeira decisão proferida no processo afronte, por exemplo, a Constituição, não é possível dispensar-se a apelação e outros eventuais recursos, deduzindo-se, de imediato, o extraordinário. O que se faz é permitir que certas decisões, que não tenham potencialidade de percorrer os tribunais inferiores, possam ser guindadas ao Supremo, em homenagem à dignidade da matéria constitucional, o que, então, fez a Constituição não excluir a possibilidade do extraordinário, mesmo não se cuidando de decisão de tribunal de segundo grau .

A diferença justifica-se a fim de não suprimir o exame da temática constitucional ao Supremo Tribunal Federal, que é visto como o guardião da Constituição. Assim, uma decisão contra a qual não se prevê recurso que possa levá-la a tribunais regionais ou estaduais, como ocorre com os julgados dos Colégios Recursais dos Juizados Especiais, pode ser enfrentada, diretamente, no Supremo Tribunal Federal, desde que nela seja discutido o tema constitucional (súmula 640 do STF) e desde que se trate de decisão de única ou última instância .

Para o cabimento do especial, além de se estar diante de decisão de tribunal , há necessidade de ter havido, na decisão, contrariedade a tratado ou lei federal ou negativa de vigência de tratado ou lei federal; ter sido julgado válido ato do governo contestado em face de lei federal; e der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.

7. O juízo de admissibilidade. Em razão de o processo representar uma série de atos preordenados, vinculados uns aos outros, a regra é ser o recurso interposto perante juiz integrante do órgão prolator da decisão recorrida. Isso foi quebrado, em nosso sistema, somente com a ordenação implantada pela Lei n. 9.139, de 30 de novembro de 1.995 para o agravo de instrumento, que veio a determinar sua interposição diretamente perante a presidência do órgão com competência para julgar o recurso . Em todos os demais casos, há a imposição dessa sequência, como se verifica na apelação (art. 514), nos embargos infringentes (art. 531), nos embargos de declaração (art. 536), no recurso especial e no extraordinário (art. 541), no agravo contra negativa de seguimento ao especial ou extraordinário (art. 544, § 2º) e nos agravos regimentais (art. 557, § 1º).

O juiz a quem o recurso é apresentado não fica, todavia, restrito a exercer as funções de mero protocolizador. A ele cabe praticar, em primeira mão, o exame de admissibilidade, em toda sua profundidade , podendo, portanto, até mesmo negar seguimento ao recurso, deixando de recebê-lo, caso não estejam presentes os seus requisitos de admissibilidade. Em contrapartida, em regra , não possui competência para rever a questão de fundo, antes, naquela instância, resolvida.

Um juízo positivo de admissibilidade perante o órgão a quo não gera preclusão , nem, portanto, garante o conhecimento da irresignação apresentada. O fato de haver o recurso sido admitido não retira do órgão que cumpre decidi-lo o dever de proceder a novo juízo de admissibilidade , independentemente de provocação de qualquer das partes, de vez que os requisitos de admissibilidade representam matéria de ordem pública, conhecíveis, pois, de ofício . Não há, deste modo, interesse em recorrer contra a decisão que admite o recurso, mandando-o à instância superior, pois a decisão pela admissibilidade é, em última análise, somente provisória.

Caberá ao órgão ad quem, portanto, rever a decisão de admissibilidade, bem como, ainda, examinar, em primeira mão, possíveis ocorrências supervenientes que, igualmente, impedem o exame do mérito do recurso.

Diferentemente se passa quanto à decisão que nega seguimento ao recurso. Essa decisão está sujeita à preclusão, gerando, como coloca SÉRGIO BERMUDES , uma sucumbência específica. Pode, pois, tornar-se definitiva, caso não venha o prejudicado com o não recebimento do recurso a insurgir-se contra ela, deixando transcorrer sem impugnação o prazo para opor-se ao decidido. Nosso sistema permite, relativamente a todos os recursos, meio de oposição à decisão que lhes cerceia o seguimento, sendo que, no caso dos recursos especial e extraordinário, a via própria para a impugnação da negativa de seguimento é a do agravo de instrumento (art. 544). Não seria concebível que, tendo o órgão a que toca o exame do mérito de recurso, a possibilidade de rever a questão de admissibilidade, quando recebido o recurso, não a tivesse quando o recurso não é recebido.
Portanto, a decisão sobre a admissibilidade representa um pronunciamento sobre o processo , uma decisão formal, que não adentra na questão de fundo, que será etapa posterior, se for o caso, ou seja, se houver um juízo positivo de admissibilidade. Do contrário, o processo finda nesse ponto, mantendo-se a decisão anterior, sem necessidade de que haja uma manifestação expressa assim o dizendo.

A admissibilidade, por óbvio, precede o exame dos fundamentos, aos quais somente se chegará com um juízo positivo de admissibilidade. Não passando pelo crivo da admissibilidade, o recurso não será conhecido; passando, mas não guardando procedência os seus fundamentos, será improvido .

8. Da separação entre o juízo de admissibilidade e o juízo de mérito. Com relação aos recursos que podemos denominar de ordinários, a separação do juízo de admissibilidade do juízo de mérito é tarefa mais simples, conseguindo-se, sem grandes dificuldades, proceder ao crivo de admissibilidade, sem adentrar no merecimento. Assim, é possível pronunciar-se sobre a adequação do recurso, sua regularidade formal, a tempestividade, o preparo etc. passando ao longe da questão de fundo.
Com os recursos excepcionais, entretanto, a questão muda, ao menos em parte, de figura. Embora relativamente a eles exista também uma parcela de requisitos objetivos que permite, de modo bastante claro, a separação das duas realidades – admissibilidade e mérito – há elementos que, embora sejam de admissibilidade, não conseguem, porém, posicionar-se de modo indiscutivelmente claro em relação à linha divisória, o que acaba por favorecer o indevido avanço do integrante do órgão prolator da decisão recorrida sobre aquilo que está sendo devolvido somente aos órgãos superiores.

Isso se verifica exatamente pelos pressupostos diferenciados de cabimento dos recursos especial e extraordinário, cuja possibilidade de se recorrer não se circunscreve somente ao fato objetivo da sucumbência, como se dá com os chamados recursos ordinários. Reclama-se mais para o uso desses, ou seja, requer-se uma motivação específica e diferenciada, que vem a ser aquilo que se coloca, no texto constitucional, como hipóteses de cabimento (art. 102, III e 105, III) e que atrela o recurso a um fundamento específico.

É imprescindível estabelecer-se uma baliza clara entre admissibilidade e mérito, principalmente considerando-se que haverá, quanto à admissibilidade, um exame no órgão a quo e que não poderia servir para a usurpação da competência, adentrando o despacho de admissibilidade do recurso em razões de mérito e, assim, em última análise, impedindo que a contrariedade ao seu entendimento chegue ao órgão com capacidade para apreciar a sua correção.

A problemática que se coloca, logicamente, não é quanto aos requisitos comuns a todo e qualquer recurso, porém no que diz respeito aos específicos do especial e do extraordinário. Essa limitação não se apresenta fácil de ser fincada.

A questão não é nova e nem tem sido solucionada de modo pacífico, embora não haja dificuldade em se afirmar, com toda força, que “a lei confere ao presidente do tribunal recorrido somente poderes para verificar da admissibilidade do recurso ”. Na situação concreta, entretanto, a afirmação acaba não tendo o mesmo vigor.

9. Pressupostos específicos de admissibilidade do extraordinário. Prevê o inciso III, do art. 102, da Constituição Federal, a competência do Supremo Tribunal Federal para “julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato do governo local contestado em face desta Constituição; e d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal ”. Aduziu, ainda, o § 3º, do art. 102, a necessidade, em qualquer das hipóteses de cabimento do extraordinário, de demonstrar a repercussão geral da questão constitucional, o que passou a ser um requisito de admissibilidade cumulativo aos a que se referem as letras, do inciso III, do art. 102, da Constituição.

A separação entre admissibilidade e mérito não é difícil nas hipóteses das letras b, c e d. O mesmo, no entanto, já não se passa quanto à hipótese da letra a. O legislador, como bem coloca BARBOSA MOREIRA, não empregou uma técnica homogênea na definição dos tipos de cabimento do extraordinário, realizando uma “descrição axiologicamente neutra” nos casos das letras b, c e d, enquanto, relativamente à letra a, apresentou um juízo de valor, de modo que a decisão atacada por esse fundamento revela-se errada em si mesma, enquanto, nas demais hipóteses, não, podendo existir o pressuposto constitucional mesmo diante de uma decisão correta .

Não existe complexidade em se demonstrar que o acórdão declarou a inconstitucionalidade de certo tratado ou lei federal (letra b), pois ela se revela quando deixa de se aplicar uma lei ou um tratado por se achar em choque com as normas constitucionais; portanto, “será suficiente a declaração de inconstitucionalidade ”. Basta, pois, pinçar-se da decisão recorrida o texto em que se encontra a manifestação do tribunal a quo, proclamando a inconstitucionalidade, nada mais do que isso. Saber se ela foi bem ou mal reconhecida é questão de mérito, nada tendo com a admissibilidade, e afastando-se, por conseguinte, do crivo da presidência do tribunal recorrido.

Nessa linha, não é correto, no juízo de admissibilidade, impedir a continuidade do recurso sob o fundamento de que a inconstitucionalidade foi bem reconhecida. Quem tem competência para dizer isso, rejulgando o acórdão recorrido, é só o Supremo Tribunal Federal. É certo que, em se tratando de questão pacificada no seio do próprio Supremo, soaria desperdício de tempo e de atividade jurisdicional admitir o recurso. Todavia, não revelam matéria pacífica duas ou três decisões do Supremo, no mesmo sentido daquela atacada pelo recurso, sendo, ao contrário, não desprezíveis pronunciamentos reiterados e, quiçá definitiva, a existência de súmula sobre o assunto, ainda que não editada sob o signo da vinculação.

Na mesma linha se coloca a hipótese da letra c: julgar válida lei ou ato do governo local contestado em face desta Constituição. Cabe ao recorrente demonstrar que a decisão recorrida amparou-se em lei ou ato local, que foi discutido face à Constituição Federal. O Supremo, todavia, tem posição firmada no sentido de que a contestação do texto constitucional há de ser relevante , de modo a afastar as simples discussões sem maior embasamento. A questão do pré-questionamento aqui é da maior importância. Se a decisão simplesmente fundamentou-se na lei ou ato do governo local, sem a questão constitucional, sequer o extraordinário seria cabível, pois não se faz possível discutir naquela Corte a lei local. Daí a imprescindibilidade de, durante o processo, a validade da norma local ter sido posta à prova diante da Lei Maior. Se essa questão foi objeto de discussão nos autos e não foi considerada pelo acórdão, será caso de embargos de declaração, nos quais se postule o enfrentamento constitucional da matéria. A persistir o silêncio, o extraordinário não será admitido, embora possa sê-lo o especial, por ofensa ao art. 535, II, do Código de Processo Civil.

Também no caso não se faz possível, no despacho de admissibilidade, reconhecer que a decisão está correta, a pretexto de inexistir a inconstitucionalidade das normas abrigadas pelo aresto recorrido. Isso é matéria de mérito e, destarte, da atribuição exclusiva do Supremo Tribunal Federal.
O perfil é, rigorosamente, o mesmo, quando se trata de decisão que julga válida lei local contestada em face de lei federal (letra d). As únicas coisas que devem ser destacadas são o fato do questionamento ser somente da lei local, não se cogitando de ato do governo local; e a circunstância de a contestação dar-se à vista da lei federal e não da Constituição, como se passa com a hipótese da letra c. Para raciocínio, essas distinções não alteram o que antes se colocou, sendo certo que, se reconhecida foi a prevalência da lei federal, a questão não enseja recurso extraordinário, de vez que era com preocupação quanto a essa que se previa o recurso.

A dificuldade de apartar-se admissibilidade e mérito, porém, oferece-se na hipótese da letra a: contrariar dispositivo da Constituição, até porque a ofensa à Constituição faz parte, simultaneamente, do juízo de admissibilidade e do juízo de mérito, uma vez que, se a decisão contrariou a Constituição, o recurso não tem que ser apenas admitido e depois conhecido, mas terá também que ser provido. Procura-se com essa previsão concentrar no Supremo Tribunal Federal a interpretação da norma constitucional, o que evidencia que apenas uma única interpretação será a correta, pois esse órgão é o seu guardião e como tal é o único que tem poderes para dizer, definitivamente, o que há de ser entender como exegese correta da Lei Maior.

Em tese, nessa linha de raciocínio, sempre que a previsão constitucional restar em jogo, será possível que uma das partes, logicamente a vencida, diga que o entendimento que se conferiu ao texto não é correto, havendo sido contrariada a Constituição, o que lhe daria o direito de ter acesso ao Supremo.
Desse modo, a questão se resumiria não à contrariedade, mas somente à discussão da Constituição, pois o maltrato satisfaria, fosse afirmado , logicamente diante do debate em torno da questão constitucional (pré-questionamento). Nesse sentido, é a posição de MOACYR AMARAL SANTOS, que assevera: “basta que se questione sobre a constitucionalidade da decisão, em face do texto constitucional, para ter cabimento o recurso extraordinário ”.

BARBOSA MOREIRA valoriza bem a peculiaridade da redação do inciso constitucional, enfatizando ter sido usada hipótese de procedência para aludir ao simples cabimento. Tal circunstância não pode levar ao absurdo de se pensar que o recurso teria que ser primeiro provido para depois ser conhecido. Arremata a questão dizendo que o requisito de admissibilidade é “a mera ocorrência hipotética (isto é, alegada)” de ofensa à Constituição .

Esse enfoque implicaria restrição absoluta ao juízo de admissibilidade, obrigando sempre ao recebimento do recurso, a fim de que a Corte Superior se pronunciasse acerca da interpretação que veio a ser dada ao texto constitucional. Em princípio, esse é o entendimento correto. Todavia, não se pode deixar de considerar a criação entre nós, exatamente para interpretar as regras e princípios da Constituição, das súmulas vinculantes (art. 103-A), de modo que, diante delas, a interpretação constitucional já estaria dada, sendo caso, então, de impedir a subida do recurso sempre que a posição sumulada tiver sido adotada pelo tribunal local.

Não é, entretanto, somente nessa hipótese que se faz possível obstar a subida do recurso. Por igual, a posição pacificada do Supremo, mesmo que não sumulada, serve de óbice a que se alegue a contrariedade à Constituição. Não se pode, porém, entender como tal a inteligência estampada em alguns poucos acórdãos ou mesmo em uma quantidade mais expressiva desses, mas com votos divergentes, por exemplo.

Há de se ter presente que o tema constitucional deve ser preservado. Isso se coloca tanto no que pertine ao seu exame pelos tribunais locais, que, podendo decidir a causa sem adentrar nessa sorte de assunto, devem preferir assim proceder, como também vendo simples interpretação das leis infraconstitucionais na aplicação de princípios que foram traduzidos em lei, como se passa, verbi gratia, com a legalidade, o devido processo legal, a plenitude do direito de defesa, a igualdade etc., hipóteses em que se teria a violação indireta do texto constitucional, não suficiente para a admissibilidade do extraordinário, pois, antes, estaria ocorrendo infração à lei infraconstitucional .

Desse modo, no juízo de admissibilidade, diante da alegação de contrariedade à Constituição, cumpre ao presidente do tribunal recorrido ou a quem lhe faça as vezes verificar se a ofensa não pode ser entendida como reflexa, indireta e, ainda, se sobre o assunto já não existe súmula vinculante ou mesmo uma posição consolidada da própria Corte Superior. Se nada disso houver, resta-lhe determinar a subida do recurso, pois será atribuição do Supremo, aliás a principal delas todas, dizer se foi ou não contrariada a Constituição.

Relativamente à chamada repercussão geral da questão constitucional (§ 3º, do art. 102), o juízo de admissibilidade do extraordinário no tribunal a quo restringe-se ao exame do fundamento da letra indicada, que é cumulativo com a repercussão, sendo que, quanto a essa, cabe-lhe apenas a mera constatação formal de sua apresentação, fazendo, portanto, somente a verificação da existência desse item, sem poder avaliar a sua ocorrência, nem quando salta aos olhos a fragilidade da alegação. A competência exclusiva para a aferição da matéria é do Supremo Tribunal Federal, tal como ocorria com a relevância da questão federal, ao tempo da Emenda Constitucional n. 1 .

10. Pressupostos específicos de admissibilidade do especial. Quanto ao recurso especial, o art. 105 da Constituição reserva à competência do Superior Tribunal de Justiça o seu julgamento, diante de “causas decididas em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal ou negar-lhes vigência; b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal ; e c) der à lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal”. Em todas as previsões, há de se entender lei federal em sentido amplo, abrangendo não só ela mesma, mas tudo quanto seja direito objetivo gerado pela União, como ensina BOTELHO DE MESQUITA .

A mesma falta de técnica com que se depara quanto ao extraordinário revela-se no especial, havendo feito o legislador, também aqui, colocações objetivas, isentas de ponderação de valor, nas letras b e c, trazendo, porém, na letra a, um requisito que seria mais apropriado ao provimento do recurso do que ao seu simples conhecimento .

A proposição tratada no permissivo da letra a considera duas situações diferentes, sendo que uma delas, antes da Constituição de 1.988, não havia para a lei federal . Cabe o especial, atualmente, tanto nos casos de contrariedade a tratado ou lei federal, de que antes não cuidava a Constituição, como nos de negativa de vigência de tratado ou lei federal. Por óbvio, as duas hipóteses não cuidam da mesma circunstância.

Contrariar é maltratar, interpretar de modo errôneo, aceitando a incidência da norma para a solução do caso debatido, mas fazendo-o de forma defeituosa, sem conferir ao preceito o rendimento que dele deveria ser extraído. Negar vigência é deixar de aplicar a disposição legal adequada para a solução do caso; é negar a existência de regra jurídica, com o que também se afronta-a, porque se deixa de atendê-la . Não é uma questão de direito intertemporal, dizendo-se que determinada regra não está em vigor , mas a simples desconsideração do preceito pertinente, sem dizê-lo revogado ou ainda não em vigor, mas proclamando-o inadequado ao caso, negando-lhe, em resumo, aplicação .
As duas hipóteses revelam descumprimento da legislação federal: em um caso, interpreta-se erradamente a lei; no outro, só se despreza-a, o que, em última análise, é revelador também de uma interpretação errada, dado que se julgou não ser ela ajustada à solução da pendência.

Quando se fala em contrariar, cogita-se de uma interpretação única, do órgão a quem toca fazer a exegese definitiva da regra. Da mesma forma que o Supremo Tribunal Federal é posto como o guardião da Constituição, o Superior Tribunal de Justiça está alçado à dignidade de guardião da legislação federal infraconstitucional, de modo que somente ele poderia dizer se a lei federal foi ou não contrariada.

Seria pensável, portanto, que, sempre que houvesse discussão de lei federal, caso alguma das partes a entendesse ofendida, teria ela o direito de levar a sua causa ao Superior Tribunal e obter, então, a interpretação autêntica do único órgão com competência para fazê-lo definitivamente. Parece ser esse o entendimento correto, de modo a não caber ao prolator do despacho de admissibilidade adentrar no merecimento que da lei retirou o tribunal recorrido, proclamando o acerto da decisão combatida . A interpretação é só do órgão superior e de nenhum outro, de modo que, se houvesse, estaria havendo usurpação de competência .

De qualquer modo, é evidente que não tem sentido remeterem-se ao Superior Tribunal de Justiça, em busca de sua exegese, causas decididas com base em lei federal de interpretação pacificada no próprio Superior, até porque, nessa hipótese, o seu entendimento já é conhecido, dispensando provocação e nova manifestação. Uma ou outra decisão não afastam, no entanto, essa possibilidade, mas uma jurisprudência solidificada e daquele órgão, sim. Para romper esse obstáculo, tentando modificar o pensamento assente, o recurso deve enfrentar o entendimento conhecido, demonstrando não o ignorar, porém trazendo fundamentos novos, suscetíveis de justificarem uma nova análise do tema.

Parece claro, portanto, que, ao usar o recurso especial, a parte não pede e nem pode ficar confinada a obter o entendimento da Presidência do Tribunal recorrido sobre a matéria. Faz jus, sim, a obter o pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça, quer especificamente para o seu caso, quer pela revelação, no juízo de admissibilidade, que a Corte Superior já tem entendimento firmado acerca do assunto.

Nos casos do especial fundado na negativa de vigência, o âmbito do juízo de admissibilidade pode ir um pouco além, tanto que sob a égide da Constituição de 1.967 e sua Emenda n. 1, era invocada, com incrível frequência, a súmula 400 do Supremo Tribunal Federal, que se contentava com uma interpretação apenas razoável da lei federal . Havia mesmo quem dissesse que o critério era de ponto de vista ou de ótica desse ou daquele juiz ou tribunal . A cláusula, no entanto, não tem essa largueza toda. Sustentamos – e o repasse da posição para o especial é válido – que a mesma se justificava em razão de se pretender que a lei ou o tratado não fosse desprezado, que não fosse ignorada a sua existência, que, enfim, fosse aplicado. Levado em apreço, já, portanto, não mais se lhe negando vigência, a sua interpretação poderia ser esta ou aquela, contentando-se até mesmo com algo só razoável, desde que devidamente fundamentado .

Como não se está reclamando de uma interpretação errada, contrária ao texto da lei, é possível cercear o acesso à instância superior, por conta de gozar o artigo a que se negou vigência com entendimentos doutrinários ou jurisprudenciais como aquele prestigiado pelo acórdão recorrido . Não se conferem, ainda aqui, no entanto, ao órgão a quem cabe fazer a admissibilidade poderes de colocar a sua interpretação e, com base nela, impedir a subida do recurso, mas não se lhe retira o direito de indicar posições outras que subscrevam aquela que veio a ser adotada pelo acórdão recorrido.

A interposição do recurso, por força de haver o acórdão julgado válido ato de governo local contestado em face de lei federal (letra b), exige que se indique no recurso o reconhecimento da validade do ato, mas também o seu enfrentamento à luz da lei federal, devendo esta querela estar retratada no próprio acórdão.

Como antes se colocou para o extraordinário quanto à proposição desta desdobrada, não cabe, no juízo de admissibilidade, enfrentar-se a decisão, perquirindo se foi correta ou não ao dar pela validade do ato do governo local. Cumpre, tão só, reconhecer a existência de discussão, nos limites delineados pela Constituição, remetendo ao órgão superior para o julgamento do mérito da controvérsia.

Por fim, é possível o especial quando a decisão recorrida houver dado à lei federal interpretação divergente da que lhe foi atribuída por outro tribunal (letra c), inclusive o próprio Superior Tribunal de Justiça. Em que pesem as exigências formais de demonstração da divergência na interpretação do direito federal (art. 541, parágrafo único, do CPC e art. 255 do RISTJ) e o rigor que se cobra quanto à semelhança dos casos, a separação entre os juízos de admissibilidade e de mérito é por demais clara.

Para ter, quanto a esse aspecto, o recurso admitido, caberá ao recorrente confrontar a decisão que combate com decisão de outro tribunal, deixando evidentes os pontos de convergência e de divergência, que deverão ser demonstrados analiticamente, como a lei e o regimento pedem.
Não há que se preocupar o recorrente, no que tange à admissibilidade, com a superioridade ou o acerto de uma das decisões, evidentemente daquela com que se compara o caso decidido. Por força disso, quanto à admissibilidade, restará ao órgão que a realiza confrontar os casos e, se houver identidade, certificar-se das decisões diferentes, deferindo, pois, ao tribunal ad quem, se também reconhecer a divergência sobre a mesma tese jurídica, decidir sobre qual delas é a correta.
Não é deferido ao órgão a quem compete o exame da admissibilidade enfrentar a questão de fundo, ficando sua atuação restrita a aferir a identidade dos casos e a divergência da conclusão. Logicamente, isso não quer dizer que não há lugar, mesmo nesse juízo prévio, para aquilatar a idoneidade do demonstrativo, sendo, assim, de se negar seguimento ao recurso em razão da falta de identidade ou similitude entre os casos, por não ser atual a divergência, como quando se trazem decisões antigas para comparação, e, ainda, em vista de ter havido a consolidação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido do acórdão recorrido , o que tornaria irrelevante a divergência entre tribunais de estados membros diferentes e mesmo a divergência da decisão recorrida com pronunciamentos mais antigos do Superior Tribunal de Justiça.

7. Da eqüidade nas ações condenatórias envolvendo a Fazenda Pública. Esse mesmo raciocínio, ou seja, de prestígio à igualdade, vale para as ações condenatórias em que esteja envolvida a Fazenda Pública. Todavia, ele obriga a uma visão dúplice do fenômeno da igualdade, de modo a não deixar de prestigiá-lo as decisões que simplesmente concedem à Fazenda, ainda quando vencedora, honorários somente por eqüidade, afastando-se do § 3o, de modo a trazer às demandas em si, desconsiderando as partes nelas envolvidas, para patamares menores em termos de honorários. Não haveria, nesse caso, qualquer irregularidade a ser corrigida pela via recursal, de vez que ambas as partes estão sendo tratadas de modo igual.

O que não pode ocorrer – e aí se estaria diante da violação ao princípio da igualdade – é a concessão, em primeiro grau, de honorários em percentual sobre o valor da condenação em benefício da Fazenda Pública, mas, com a reforma da sentença, em segunda instância, conceder-se ao particular vencedor menos que antes se deferira à parte contrária, fazendo-o por conta da aplicação da regra do § 4o, que autoriza a eqüidade. Da mesma forma, rompimento com a isonomia haverá se vencedor o particular, em primeira instância, obtiver menos do mínimo previsto no § 3o, mas com a reforma da sentença e, então, vitoriosa a Fazenda, conceder-se a esta honorários dentro dos limites do § 3o. Nesses casos, estará ocorrendo, concretamente, o repudiado tratamento discriminatório, a ensejar o reclamo recursal para eliminá-lo.

Evidente que não haverá necessidade de se motivar o recurso na inconstitucionalidade do privilégio colocado para a Fazenda Pública, de vez que essa matéria não pode ser banalizada e se apresentam meios de interpretar o § 4o do art. 20 em consonância com o sistema do Código de Processo Civil, bastando para tanto que dele não se faça preceito de mão única, somente em benefício da Fazenda Pública.

A eqüidade e a isonomia, que dentro dela se abriga, não se conciliam com a diferenciação que a comparação entre as normas parece autorizar.

Os critérios de Definição dos Honorários de Sucumbência

26\09\2008

CLITO FORNACIARI JÚNIOR

SUMÁRIO: 1. Dos honorários de sucumbência – 2. Dos honorários nas sentenças condenatórias – 3. Dos honorários advocatícios disciplinados pelo § 4o do art. 20 – 4. Da definição dos honorários conforme o princípio da equidade – 5. Da iniquidade a que a literalidade da lei pode conduzir – 6. Dos recursos contra a fixação de honorários de sucumbência – 7. Da equidade nas ações condenatórias envolvendo a Fazenda Pública.

1. Dos honorários de sucumbência. Os diferentes critérios estabelecidos literalmente pelo Código de Processo Civil para a fixação de honorários de advogado têm sido fonte de injustiças, nem sempre suscetíveis de serem afastadas com facilidade.
Assim, após estar imposta, no caput do art. 20, a obrigação do vencido pagar ao vencedor as verbas de sucumbência, estando, entre elas, os honorários, os parágrafos terceiro e quarto deste mesmo artigo estabelecem parâmetros diferentes para a fixação do montante devido ao profissional que atuou no processo, em defesa da parte vitoriosa.

Nessa linha, o § 3o impõe o pagamento de honorários entre dez e vinte por cento sobre o valor da condenação. Por sua vez, o § 4o determina ao juiz a fixação de honorários “consoante apreciação equitativa”, referindo-se às causas de pequeno valor, às de valor inestimável, àquelas em que não houver condenação, às execuções e às em que resultar vencida a Fazenda Pública . Tentou, assim, afastar-se, em princípio, da vinculação dos honorários ao valor da causa, tal como anteriormente era prática usual nesse campo.

Não se denota uma razão plausível para se discriminarem as situações tratadas nessas regras, salvo com relação às ações de pequeno valor e às de valor inestimável.
Relativamente às demandas de pequeno valor, a aplicação do critério preconizado no § 3o poderia conduzir a honorários aviltantes, de forma que o uso da equidade, deferido ao juiz, enseja que se afaste o risco de uma remuneração indigna, que de uma imposição direta e objetiva poderia advir.
Do mesmo modo, mas por outros motivos, justifica-se a referência às ações de valor inestimável, em relação às quais inexiste contenda de cunho patrimonial, que pudesse oferecer referencial econômico para o atrelamento dos honorários ao valor em disputa, de maneira a não se poder cogitar de seu valor, ainda mesmo nos casos de condenação.

As demais situações processuais diferenciadas, inclusive e principalmente a decorrente de ser vencida a Fazenda Pública, não se amparam em elementos idôneos para um tratamento discriminado, pois, não só os litigantes devem ser tratados com igualdade, mas também as demandas deveriam ser consideradas de modo parificado, não havendo como, de antemão, entenderem-se algumas mais trabalhosas ou importantes que outras.

O tratamento desigual que parece autorizar a norma em questão não se revela, em princípio, legítimo, de vez que transparece não assentado em um fundamento razoável, como é reclamado por CANOTILHO, para que se tenha uma arbitrária violação da igualdade jurídica .

De qualquer modo, existindo a lei, cumpre observá-la, muito embora a sua observância deva ser feita após um processo de interpretação, no qual se confira destaque ao aspecto sistemático, a fim de não representar a lei uma forma de ultrajar direitos.

2. Dos honorários nas sentenças condenatórias. A previsão contida no § 3o do art. 20 disciplina percentual e base de cálculo para as sentenças condenatórias: “os honorários serão fixados entre o mínimo de dez por cento e o máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação”. Determina, outrossim, que o julgador atenda a alguns critérios, denominados por CAHALI de elementos qualitativos , e que estão ligados ao serviço prestado em si. Sobre eles, o magistrado deverá debruçar-se para a fixação, dentro dos limites demarcados e do percentual que entender justo, sem, portanto, conferir-lhe possibilidade de conceder mais de vinte ou menos de dez por cento.

Logo no início da vigência do Código de Processo Civil de 1973, CELSO AGRÍCOLA BARBI chamava atenção para o fato de a referência a valor da condenação poder induzir a que se entendesse aplicar o preceito tão só às ações condenatórias julgadas procedentes. Dizia ele que esse não era o sentido da norma, pugnando, então, para que a jurisprudência sanasse essa falha, aplicando o preceito às ações condenatórias julgadas improcedentes e às demais ações , evidentemente tomando em consideração os percentuais colocados pelo § 3o.

Todavia, a postulada correção não se fez, vindo a distinção a ser agravada pela alteração introduzida no § 4o, do mesmo art. 20, pela Lei n. 5925/73, o que justificou a crítica do mesmo CELSO AGRÍCOLA BARBI, dizendo que, na tentativa de corrigir um erro, cometeu-se outro . Dessa forma e diante agora da duplicidade de textos legais, é justo concluir-se que teria sido intenção do legislador tratar as situações de modo realmente diferenciado, até porque a jurisprudência, em que BARBI depositava a sua confiança, não se direcionou no caminho proposto, persistindo em tratar de modo diferente as ações, conforme a sua natureza.

Portanto, a situação de que cuida expressamente a regra citada abrange somente as ações de natureza condenatória julgadas procedentes. As ações declaratórias, constitutivas e mandamentais estão expressamente alijadas desta previsão, até porque, no parágrafo seguinte, estabelece-se critério diverso para as demandas “em que não houver condenação.” Por força do § 4o e da referência, no terceiro, às sentenças condenatórias e não às ações condenatórias, até mesmo as demandas condenatórias julgadas improcedentes, pela disposição legal, não devem ter a fixação dos honorários regida pela norma em questão.

Pode mesmo dizer-se, mais precisamente, que a incidência da regra do § 3o acaba por se restringir somente às ações condenatórias voltadas à cobrança de quantia , de vez que, nas condenações, a entrega de coisa e cumprimento de obrigação de fazer que, em princípio, estariam envolvidas pela mesma previsão legal, dado serem sentenças também condenatórias, rotineiramente não se tem a definição do valor da condenação, de que fala a lei, de modo a inviabilizar a aplicação do percentual sobre um valor inexistente, salvo se houver apego ao valor atribuído à causa e desde que este represente, efetivamente, o valor econômico em disputa.

Transparece o § 3o como um preceito excepcional, definidor dos honorários para uma particular espécie de decisão, sem que a partir do mesmo se possa ampliar a sua abrangência a fim de alcançar outras situações não arroladas pela disposição legal.

Por valor da condenação, há de se entender o montante imposto pela sentença, ou aquele definido pela sentença, porém sujeito, ainda, à atualização monetária e aos acréscimos de juros, a serem lançados na memória de cálculo (art. 604 do CPC), ou, ainda, aquele que resultar de liquidação de sentença por arbitramento ou por artigo, nas hipóteses em que a sentença não definiu o quanto devido. Em qualquer dos casos, não incidirão os honorários sobre a importância das custas , que terão que ser pagas pelo vencido também em decorrência do fenômeno da sucumbência e que não integram o valor do bem da vida que o processo reconheceu em prol do vencedor. Ainda quando essas devem ser reembolsas ao vencedor, porque, anteriormente, as adiantou, não incidem sobre elas a verba honorária.

Os honorários fixados na condenação e não pagos, após a citação para pagamento, portanto, já na fase do processo de execução, ficam sujeitos à incidência de juros, contados desde essa citação e calculados sobre o seu valor atualizado . Com isso, pode acontecer de os honorários, no momento do pagamento, representarem um valor superior ao percentual máximo da condenação, o que, todavia, não caracteriza afronta à regra do § 3o do art. 20, pois os juros são devidos unicamente por força da mora, dado que o pagamento deveria ter ocorrido tão logo se deu a citação em execução. Portanto, na decomposição das verbas, a parcela referente aos honorários em si estará correta, devendo para esse fim ser desconsiderado o que for devido em razão dos juros de mora.

3. Dos honorários advocatícios disciplinados pelo § 4o do art. 20. Quanto à previsão do § 4o, ao contrário do disposto no parágrafo precedente do art. 20, ela volta a abranger todas as demais circunstâncias em que possam resultar condenação em honorários, deixando, contudo, em relação a elas, de fixar limites mínimos e máximos para a definição desses, valendo o juízo de equidade, livre, portanto, de limites percentuais.

Além de abarcar todas as hipóteses, exceto aquela de que trata o § 3o, particulariza a disposição algumas outras situações que também representam sentenças condenatórias, que estariam, em tese, jungidas à previsão anterior, porém às quais o legislador houve por bem afastar da subsunção do preceito.

Em primeiro lugar, preocupa-se a regra com as causas em que não houver condenação. Com certeza, o objetivo dessa assertiva é contrapor-se ao parágrafo anterior, que particularizou uma hipótese (sentenças condenatórias), afastando, por lógica, as demais. Apesar de se referir a institutos diferentes, de vez que, nesse parágrafo, cogita de causa e, no outro, refere-se à sentença (valor da condenação), é correto afirmar-se que, se a sentença for condenatória, os honorários serão fixados de acordo com o § 3o; do contrário, ou seja, diante de sentenças constitutivas, mandamentais ou declaratórias, inclusive aquelas que julgam improcedentes ações condenatórias, de vez que guardam essa natureza, bem como, ainda, as sentenças que extinguem o processo sem julgamento de mérito, a definição dos honorários deverá ocorrer consoante regras de equidade, definidas pelo juiz.
Em segundo lugar, ainda que se tenha decisão condenatória, a equidade será o critério, quando se tratar de causas de pequeno valor, de valor inestimável ou quando for vencida a Fazenda Pública.
Como antes foi colocado, relativamente às causas de pequeno valor, até se compreende a motivação do preceito, pois os honorários, vinculados a percentual incidente sobre a condenação, fatalmente iriam importar em montantes que aviltariam a profissão de advogado, de vez que, mesmo aplicado o percentual máximo, certamente os valores de honorários seriam irrisórios.

A definição do que seja causa de pequeno valor fica a critério do juiz, que haverá de preencher esse conceito vago, podendo tomar como referencial os valores postos como limites para os Juizados Especiais ou, então, o valor que ficaria sujeito, em São Paulo, ao pagamento de custas mínimas ou, ainda, as causas, cujo valor da condenação importaria em honorários aquém do montante mínimo estabelecido na tabela elaborada pela Ordem dos Advogados do Brasil.

Diante das causas de pequeno valor, considerando que o trabalho do profissional não há de ficar atrelado ao resultado do processo para a parte, nada impede que o valor dos honorários seja superior ao próprio valor da condenação.

No que diz respeito às causas de valor inestimável, a equidade parece ser, realmente, o único modo de fixação dos honorários. Trata-se de demandas sem conteúdo econômico, nem imediato nem mediato, mas, em relação às quais, mesmo diante dessa realidade, o legislador impõe seja declinado o valor da causa (art. 258 do CPC). ARRUDA ALVIM indica-as como as ações relativas ao estado e à capacidade das pessoas . O valor atribuído a elas, que se restringe, pois, a uma questão fiscal, não corresponde ao benefício patrimonial buscado, se é que possa ter esta conotação, de modo que, ainda que condenação pudesse existir, não haveria como se aferir o seu valor, de modo a restar inviabilizada a aplicação da regra do § 3o.

CAHALI entende que, nesse caso, o melhor critério é a fixação dos honorários em valor fixo, todavia, vê como “referencial proveitoso” o valor atribuído à causa .

Em relação à Fazenda Pública, a regra insere-se no rol daqueles odiosos privilégios, que, de há muito, deveriam ter sido banidos de nosso sistema , de vez que o princípio da igualdade de todos perante a lei e de igualdade dos litigantes no processo está reafirmado, sem que se possa, a não ser ofendendo a Constituição e o Código de Processo Civil, desrespeitá-los. Agrava a discriminação a benefício da Fazenda, a circunstância de se fazer referência apenas às causas em que a Fazenda for vencida, liberando-se, desse modo e pela literalidade do texto, a fixação de honorários entre dez e vinte por cento do valor da condenação, nas hipóteses em que a Fazenda resultar vencedora.

Também cuida este parágrafo das execuções . O objetivo da norma que alterou o preceito comentado certamente terá sido diminuir o montante de honorários que se fixava para essa modalidade de processo, considerando-o, então, mais simples quando comparado às ações condenatórias . Apesar de se poder questionar a imaginada maior simplicidade da execução, não se constata, por si só, qualquer anormalidade na regra, mormente por não criar descriminação em função das partes envolvidas no processo ou de seu resultado final, podendo bem o magistrado servir-se da equidade para remunerar melhor o profissional,diante de casos em que a maior dificuldade e complexidade do processo se evidenciam.

4. Da definição dos honorários conforme os princípios da equidade. Por equidade, há de se entender, na linha precisa de OLIVEIRA ASCENÇÃO , “a solução de harmonia com o caso concreto” , o que se reforça com a imposição ao juiz, agora não mais apenas para alinhar os percentuais, do atendimento ao grau de zelo do profissional; ao lugar da prestação do serviço; à natureza e à importância da causa; ao trabalho realizado e ao tempo exigido para a prestação do serviço.

Esses ingredientes, os quais cabe ao juiz considerar para a fixação dos honorários, acomodam-se bem às referências feitas por CARLOS MAXIMILIANO, quando diz que a equidade deve ater-se ao sistema do Direito e ser “regulada segundo a natureza, gravidade e importância do negócio de que se trata, as circunstâncias das pessoas e dos lugares, o estado da civilização do país, o gênio e a índole de seus habitantes.”

A lei não confere, portanto, foros absolutos à mera vontade subjetiva do juiz, que poderia revelar-se individual e arbitrária, mas quer que ele busque o sentimento de acordo com as leis e os costumes .
Os honorários definidos por esta forma estão desatrelados dos percentuais de que cuida o § 3o, do art. 20, podendo implicar, em princípio, fixações maiores ou menores que aquelas a que se chegaria com a incidência desse parágrafo . É certo, contudo, que não se pode desconsiderar a motivação das previsões específicas do § 4o, devendo fazer-se da regra uma exegese causal. Assim, ao menos em duas das hipóteses consideradas, ações de pequeno valor e condenação da Fazenda Pública, revela-se óbvio para onde o legislador pretendeu direcionar a desvinculação do valor da condenação: nas causas de pequeno valor, sem dúvida, autorizou que se rompa o teto máximo de 20% e, nas demandas em que for vencida a Fazenda Pública, o mínimo de 10% . Somente assim se consegue render sentido aos privilégios aqui instalados.

Guardada essa particularidade, não há como se confundir equidade com modicidade, como bem adverte CÂNDIDO DINAMARCO, ao lembrar do hábito arraigado, na jurisprudência brasileira, de barateamento dos honorários . A regra em tela é uma solução de justiça e não de economia em prol do litigante vencido ou piedade para com ele, muito embora seja comum a referência a honorários módicos em nossa legislação.

Também desvinculou a previsão em questão os honorários do valor da causa, critério tradicionalmente adotado e propugnado por CELSO AGRÍCOLA BARBI como de adoção, nos casos em que não se tratar de sentença condenatória . Nem sempre nesse referencial, até mesmo porque o valor da causa, em muitos casos, não revela o efetivo valor em disputa na demanda, irão encontrar-se elementos para chegar à equidade. Nesse sentido, ARRUDA ALVIM comprova que, ainda antes da vigência do Código de 1973, a jurisprudência já demonstrava a precariedade deste critério, rejeitando-o como elemento preponderante . Quando muito, o critério pode servir, atualmente, como componente subsidiário e em caráter excepcional , nunca como regra.

Assim, nada impede o julgador de aplicar tanto os percentuais, como o valor da causa, mas desde que, por meio deles, possa chegar a um resultado de justiça diante do caso concreto. Correta não estaria a fundamentação da decisão, caso se apontasse para a regra do § 3o, mas a tomada de empréstimo daqueles critérios, não há dúvida, pode levar à definição da regra de equidade.

Logicamente, a equidade deverá tomar em consideração, não, porém, como critério exclusivo, o valor econômico em disputa entre as partes, não porque a ele faz referência o Estatuto da Advocacia (art. 22, § 2o) , mas sim porque esse, de ordinário, influi na dimensão da demanda e no grau de trabalho e de responsabilidade do profissional.

5. Da iniquidade a que a literalidade das disposições legais pode conduzir. À luz da literalidade das regras antes postas, à mesma causa, portanto, com a mesma natureza e importância, exigindo, em tese, o mesmo trabalho, no mesmo tempo e no mesmo lugar, podem deferir-se honorários diferentes, conforme o seu resultado, de vez que estaria subsumida a critérios diferenciados de fixação.

Tal não se coloca, diga-se desde logo, em vista das ações não condenatórias, de vez que, em relação a elas, o critério discriminatório é a própria natureza da demanda e não o seu resultado e nem as pessoas nela envolvidas. A uma ação declaratória julgada procedente é possível – sendo de rigor que assim seja feito – conceder-se a mesma remuneração que se concederia a uma declaratória improcedente, por exemplo.

A discrepância é suscetível de se verificar nas ações condenatórias e nas demandas, também de natureza condenatória, em que esteja envolvida a Fazenda Pública. À condenatória procedente aplica-se o § 3o, mas à improcedente o 4o; vencida a Fazenda, aplica-se o § 4o; vencedora a Fazenda, se a sentença for condenatória, incide o § 3o. Essa diversidade fica ainda mais chocante, nos casos em que ocorre reforma de sentença de primeiro grau, invertendo-se o resultado e, logicamente, os ônus da sucumbência, advindo com isso, igualmente, a modificação da norma de regência dos honorários .

A interpretação sistemática dessas regras, contudo, não autoriza semelhante discriminação, e a ela a literalidade dos preceitos necessariamente há de ceder.

A solução pelas regras de equidade, determinada pelo § 4o do art. 20, convida e impõe a observância da harmonia, da justiça, de modo que repudia, em contrapartida, a discriminação, o tratamento de iguais de modo diferente, como se verificaria em se acudindo à simples literalidade das previsões aqui contrapostas.

Nessa linha, nada é mais harmônico e justo que tratar as partes e os profissionais que as representam e que atuam, embora em lados opostos, em um mesmo processo, de modo igual, concedendo, então, a uma, em caso de êxito de suas postulações, respeitada a objetividade do fator derrota, o mesmo que seria concedido à outra, caso ela viesse a colher os frutos na demanda que encetou.
A não ser assim, o uso da previsão que chama para a aplicação da equidade se transformará em fonte da mais absurda injustiça. A equidade não autoriza o desrespeito às regras e aos princípios da isonomia que, a par de serem definidos com fundamento matriz dos direitos e garantias individuais pela Constituição, tanto que proclamado no caput, do art. 5o, são também referendados e expressamente agasalhados pelo Código de Processo Civil (art. 125, I), como não poderia deixar de ser.

Portanto, impõe-se ao juiz de primeiro grau ter presente, na definição de honorários, o princípio da igualdade, afastando-se da precária interpretação literal dos parágrafos do art. 20 do Código de Processo Civil, para, usando da apreciação equitativa que lhe é determinada, vir a conceder ao patrono do vencedor da causa os mesmos honorários que concederia fosse vitoriosa a parte contrária, usando, inclusive, da mesma base de cálculo.

Destarte, há o juiz de tratar o valor da condenação como valor da pretensão, de modo a fixar a verba de sucumbência entre dez e vinte por cento do valor da pretensão não acolhida , da mesma forma que concederia ao autor, se vitorioso, de dez a vinte por cento do valor da sua pretensão acolhida.

6. Dos recursos contra a fixação de honorários de sucumbência. O desrespeito a esses postulados, que se afiguram maiores, quando em confronto com o mero enunciado literal da lei, rende ensejo à interposição de recursos, buscando a revisão ou a definição de equidade nas instâncias superiores.

Assim, se a sentença conceder honorários, em ação condenatória julgada improcedente, inferiores a 10% do valor da objetivada condenação, a apelação, principal ou adesiva, apresenta-se como meio idôneo para atacar o decisório. A amplitude do recurso rende oportunidade à discussão tanto da ilegalidade, por inobservância do princípio da isonomia, como da própria equidade em si, ainda que essa envolva prioritariamente questionamento de fato, pois que se define à luz da realidade concreta de cada demanda.

É certo que a necessidade de interposição de recurso, apenas para esse fim, onera a parte e o advogado, dada a obrigatoriedade do preparo da apelação, nem sempre barato. Melhor seria a devolução automática da matéria, evidentemente nos casos em que a parte, vencida no mérito, também recorra contra a sentença, para o que se faria necessário alterar a regra do art. 515, de modo a ampliar o âmbito objetivo de devolutividade da apelação.

Se a decisão for de segunda instância, cabível é o recurso especial , como, ainda e em tese, seria pensável também o extraordinário.

O especial deveria ser apresentado por infração à regra do art. 125, I, do Código de Processo Civil e não especificamente do § 4o do art. 20. Estará havendo tratamento desigual entre as partes, o que veda o inciso I, do art. 125, que estará, então, sendo contrariado. A invocação do § 4o não é, em princípio, o melhor caminho e, sem dúvida, trará dificuldades ao recorrente, uma vez que a definição da equidade, sendo um juízo de valor à luz do caso concreto, se faz a partir de uma realidade de fato, não passível de reexame no Superior Tribunal de Justiça .

Em que pese seja esta a posição mais arraigada na Corte Superior, criou-se uma linha de pensamento, admitindo, sempre com relação aos honorários fixados por equidade, a revisão dos valores, quando a fixação ofenda os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade . Afirma-se, nesse sentido, que a revisão pode dar-se quando os honorários se revelem irrisórios ou excessivos, pois se afasta do juízo de equidade, “que há de ser feita com base em critérios que guardem a mínima correspondência com a responsabilidade assumida pelo advogado .” Não se nega que o critério importa em transferir os parâmetros finais da equidade para a Corte Superior, fazendo-o a partir de critérios com certeza nada objetivos, o que poderá ensejar injustiças, mormente quando trazidas a confronto diversas causas, cada qual com sua própria realidade e que, portanto, não oferecerá elementos seguros para o cotejo a que se propõe o Superior Tribunal fazer.

Quanto ao recurso extraordinário, o seu cabimento se depreenderia da afronta ao comando do art. 5o, caput, da Constituição. Não se nega, contudo, que, havendo disposição particular, no Código de Processo Civil, que seria decorrente da Lei Maior, a apontada violação se revelaria reflexa e indireta, o que cercearia a subida do recurso para o Supremo Tribunal Federal.