A notícia da imprensa e o fato notório

29\05\2012

CLITO FORNACIARI JÚNIOR

Em uma época em que a imprensa se solidifica como autêntico poder, tomando a dianteira em denúncias de irregularidades e reclamos de apuração, isso quando não ela própria já julga os denunciados, levando à queda de ministros e funcionários, ganha importância o quanto foi reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça como fato notório, sujeito, pois, à dispensa de prova, na linha preconizada pelo art. 334, I, do CPC. A questão se feriu quanto ao funcionamento e responsabilidade de centro de comércio popular, no qual existiriam comerciantes vendendo produtos falsificados, discutindo-se pela via do recurso especial princípios atinentes à produção de provas que teriam justificado a condenação da locadora do imóvel e do administrador do empreendimento. Com o especial se buscava a nulidade da decisão.

No voto vencedor que consolida o acórdão, o relator SIDNEI BENETI destacou que, no caso, a prática de ilícitos, amplamente noticiada, aliás, por vários veículos de imprensa, pode mesmo ser considerada fato notório, embora aduzisse a existência de outras provas, nos autos, conduzindo, no seu sentir, ao mesmo resultado (3ª Turma, REsp 1.125.739, julgamento em 03.03.2011, decisão por maioria de votos). Os dois votos vencidos (NANCY ANDRIGHI e MASSAMI UYEDA) não enfrentaram especificamente a questão do fato notório, firmando tese divergente em termos de responsabilidade, prescindindo, destarte, desse aspecto.

Igual pensamento relativamente à notoriedade já fora antes externado em julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, a propósito do mesmo fato, envolvendo, entretanto, outros interessados. Nesse outro precedente, do mesmo modo, se conferiu foros de verdade ao quanto noticiado, embora houvesse ressalvado o relator ÊNIO SANTARELLI ZULIANE (Apelação n. 605.855-4/7, julgamento em 11.12.2008), que “nem sempre o que a imprensa publica obtém notoriedade, embora ajude a mentalizar a certeza de que a verdade é pública”, além de aduzir outros aspectos a fim de buscar fortalecer sua conclusão no plano dos fatos.

Transparece claro estar sendo dada vazão, em ambas as decisões, a um suposto conhecimento pessoal dos julgadores, que acreditam ser verdade aquilo que se afirma no processo. A convicção, porém, se formou não a partir do quanto se trouxe aos autos, mas sim à luz do noticiário da grande imprensa, o que, entretanto, não tem condições de ser reconhecido como contendo foros de notoriedade, no sentido técnico processual.

o conhecimento externo e o juízo de valor acerca do fato pelo prolator da decisão não têm relevância como notório, conforme bem elucida NELSON PALAIA, separando a impugnação do fato em si e a impugnação da sua notoriedade: “De fato o juiz diante da impugnação à notoriedade de um fato alegado como tal, não poderá usar de seu conhecimento privado para decidir. A relatividade do conceito implica na adoção de um padrão médio de conhecimento dos fatos. O que é notório para um pode não ser para outro, logo o juiz não deve aceitar ou dispensar a prova em função de um padrão médio de cultura. O juiz não deve consultar a sua memória nesta hora, e sim raciocinar em termos do que está na memória coletiva daqueles que possuem um padrão médio de cultura” (Fato notório, Saraiva, 1997, n. 9.5, pág. 42). Em igual sentido, perfila-se ANTONIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, distinguindo os fatos notórios daqueles que são conhecidos tão-somente per famam et vocem publicam, dizendo: “Fatos que constituem objeto do conhecimento privado do juiz são aqueles fatos singulares de que o juiz veio a saber, como pessoa particular através de percepções sensoriais exercidas fora do processo e, assim, independentemente da observância dos procedimentos probatórios estabelecidos por lei.” (Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, 2000, n. 17, pág. 26).

Nessa linha de sentir, vem à luz a lição de CARNELUTTI, quando busca definir qual a incerteza que se mostra relevante para a justificativa da atividade probatória, concluindo, então, não ser a incerteza própria do fato, mas a controvérsia em torno dele. Aduz, então, que a incerteza das partes não é motivo da discussão nos processos, nem a certeza do juiz o exime de seguir os procedimentos probatórios estabelecidos para a determinação do fato controvertido, certeza essa que pode ser obtida pelo fato notório, mas que somente é notório quando a certeza do juiz é compartida por uma generalidade de pessoas (cf. A Prova Civil, Bookseller, tradução da segunda edição italiana, 2001, pág. 42 – nota 19), concluindo, então, ser a notoriedade uma forma de prova, o que cobra do julgador uma atividade construtiva, ainda quando se questiona somente a notoriedade do fato, de modo a não ser correto considerar a hipótese como de dispensa de prova.

O equacionamento técnico da notoriedade pode levar a que se discuta com fundamentos o quanto se torna público pela imprensa, pois nem tudo que é público é verdade, até porque, como diz LORENZO CARNELLI (El hecho notorio), citado por NELSON PALAIA, se divulgam e prosperam certas mentiras, apenas por serem fatos raros ou emocionantes (obra citada, pág. 45). Tangencia a colocação aquilo que GILMAR MENDES tratou, muito apropriadamente, como o direito que se encontra na rua. Preocupa, nessa linha de raciocínio, o crescimento de algo que se poderia tratar como uma notoriedade vulgar, quiçá tendo seu germe atrelado à crescente busca de princípios para interpretação da realidade processual, sem se ater à circunstância de ser o princípio lançado como elemento a alimentar a lei, que, por sua vez, quando posta, já dele retirou o quanto poderia ser retirado, deixando, pois, de guardar importância para a criação também da interpretação, pois seu destino seria a edição da lei para o que já terá servido. Na mesma toada e levando a idêntico mal, regras de simples exegese podem ser utilizadas como princípios jurídicos, deles se servindo mesmo diante de preceitos claros que não dependeriam de interpretação, de modo que a interpretação só faz alterar a lei, ao invés de servir para se entendê-la.

Restaria como forma de controlar o correto uso do instituto, tal qual também se coloca quanto ao exagerado uso de princípios no seio do processo, o reclamo, constitucional entre nós, de motivação das decisões, que é um poderoso instrumento de qualificação dos pronunciamentos judiciais e que poderia mostrar a exata linha divisória entre o notório técnico-processual e, portanto, legal, do simplesmente vulgar. Para tanto, porém, não se poderia entender motivada a decisão que se dá por feliz por haver conseguido êxito na sua busca de um conceito ou uma regra que acabaria sendo seu reles adorno. Tanto não conduz à motivação, de vez que essa haveria de ser não simplesmente formal, mas material, somente pela qual se conseguiria chegar a um controle da racionalidade do decisório, que é o quanto se há de perseguir. Sem isso, se aplaudiria e referendaria a decisão pelos seus adereços e não pelo quanto traz acerca do direito, que é unicamente o que a justifica, ainda que não a explique.