Da validade da sentença ilíquida

23\04\2010

CLITO FORNACIARI JÚNIOR

O Processo Civil moderno sempre buscou não ser um reles sistema de formalidades, no qual o uso da palavra errada fosse definitiva senha para o malogro da postulação deduzida em juízo. Assim, de longa data, apresenta uma teoria de nulidades que renega a forma pela forma, protege a finalidade dos atos, preservando-os sempre que essa seja alcançada, consagra a preclusão e, por fim, restringe a nulidade aos casos de existência efetiva de prejuízo.
Apesar dessa sistemática, alguns aspectos processuais têm proclamação expressa de nulidade ou termos que transparecem a tanto conduzir, criando no leitor mais apressado a ideia de que, relativamente a essas, os princípios de desprestígio da forma, enquanto apenas forma, não seriam aplicáveis, e o vício, diante de qualquer circunstância, teria que ser declarado, afetando todos os atos processuais que se lhe seguiram. Nessa linha, muitos colocam, por exemplo, a nulidade por falta de intervenção do Ministério Público (art. 246 do CPC), em que pese o sistema não a referende, sempre que, por exemplo, a situação que reclamava a intervenção do representante do Ministério Público saiu do processo protegida.
Relativamente à sentença, duas disposições inserem-se nessa mesma problemática. O parágrafo único do art. 459 afirma que, “quando o autor tiver formulado pedido certo, é vedado ao juiz proferir sentença ilíquida”. Por sua vez, o parágrafo único do art. 460 reza que “a sentença deve ser certa, ainda quando decida relação jurídica condicional”. Consequência do descumprimento desses preceitos seria a nulidade da sentença, por falta de correlação entre o decidido e o pedido. Será, porém, que a declaração da nulidade sempre se impõe?
Afirmativamente entendeu a 32ª Câmara de Direito Privado do TJSP, em acórdão relatado por WALTER CÉSAR EXNER (Apelação n. 992.07.010440-8, julgado em 01.10.2009). Cuidava-se de ação voltada ao cumprimento de obrigação de fazer, na qual a sentença de primeiro grau houve por bem rescindir o contrato de que decorria a obrigação, condenando a obrigada a devolver o quanto recebera e a pagar perdas e danos, inclusive lucros cessantes. Firmou o julgado que se “protraiu para a fase de liquidação de sentença a apuração dos lucros cessantes, estes que, eventualmente, poderiam se mostrar inexistentes”. Aduziu ser a sentença mais do que ilíquida: condicional, afirmando que “a sentença pode assumir caráter condicional quando o evento futuro é inerente ao direito material, não sendo autorizado ao julgador condicionar a eficácia da sentença a evento futuro e incerto por ela mesma criado”. Viu, nesse diapasão, nulidade da sentença, de modo que determinou o retorno do processo à primeira instância.
As regras consideradas não ensejam solução tão drástica, parecendo estamparem, no CPC, uma direção ao julgador, sem que o seu desrespeito possa colocar a perder toda a atividade jurisdicional desenvolvida. Evidente que um pedido certo deve conduzir a uma sentença líquida, apreciando se há o direito reclamado. Da mesma forma, a pretensão que não diga respeito a uma relação jurídica condicional deve conduzir também a uma decisão certa, devendo o magistrado atinar ao proferi-la para o implemento da condição, definindo, a partir disso, a relação jurídica que se lhe apresenta.
Não se pode, porém, sacrificar a atividade jurisdicional, fazendo retroceder a marcha do processo, se, diante de um pedido certo, o sentenciante não conseguiu chegar a um resultado igualmente certo. Diz, corretamente, ANTONIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA que “é claro que se no momento processual adequado para proferir a sentença o juiz não encontrar elementos para acolher o pedido tal como formulado, inclusive no tocante ao seu objeto mediato, deve julgar a causa ainda que por meio de sentença ilíquida” (Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, 2000, n. 251, p. 280).
Essa mesma contemporização se faz de rigor diante de decisão que desrespeitou o direcionamento do preceito. Para tanto, o primeiro passo é atinar para quem é o interessado na disposição legal, surgindo, de modo evidente, exclusivamente, a figura do autor. De outro lado, seu interesse em recorrer coloca-se apenas quando existirem elementos nos autos que permitiriam fosse prolatada a sentença líquida. Do contrário, ele estaria buscando um milagre, que não se faz possível, pois não teria como, sem elementos, exigir sentença líquida. Portanto, o interesse do autor cinge-se a buscar a decisão líquida em segundo grau e não simplesmente postular sua anulação, com a volta dos autos ao primeiro grau. A amplitude maior conferida aos efeitos da apelação pelos parágrafos do art. 515 pode abrigar também esse quadro, embora sem previsão específica sobre o assunto.
O recurso do réu seria evidente contrassenso: pedir a anulação seria usar a forma pelo simples gosto da forma, o que soa deslealdade; reclamar, desde logo, a decisão líquida, seria oferecer-se em holocausto. O réu não teria, portanto, o que postular em sede recursal, daí a ponderada colocação trazida em THEOTONIO NEGRÃO e outros (Código de Processo Civil, 2010, 42ª edição, nota 13 ao art. 459), dizendo que “se somente o réu apelar, o tribunal, desde que tenha a ação por procedente, manterá a sentença que determinou ulterior liquidação (RT 498/115, RF 256/299, JTA 43/108)”, até mesmo por ser essa a situação a ele menos ruinosa.
De qualquer modo, postergar a definição das perdas e danos para a fase de liquidação, notadamente quando a sentença já foi proferida, não é nenhuma monstruosidade. Por primeiro, não põe a perder toda a atividade jurisdicional desenvolvida pelas partes e pela Justiça durante o curso do processo. Não se retira o pleno direito do condenado ao contraditório, pois participará da liquidação, com direito a discutir, produzir provas quanto à questão que resta em aberto, e até mesmo recorrer da decisão que relativamente a essa fase venha a ser proferida. Ademais, não se faz letra morta dos procedimentos de liquidação regrados no Código e que sempre prestigiam a defesa, com o que se deixa claro que a necessidade de liquidação não é algo tão anômalo assim. Submeter a condenação ao procedimento de liquidação, por fim, não representa a inexorável derrota do condenado, pois, nessa etapa, como ensinam NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY, pode chegar-se a apuração de resultado zero ou até negativo para o quantum da condenação (Código de Processo Civil Comentado, 2001, 5ª edição, nota 2 ao antigo art. 610), o que atesta não ser um vício insuprível, nem prejudicial ao devedor, haver decisão ilíquida, mesmo diante de pedido certo.
Portanto, a linha sustentada pelo julgado comentado não se desenha correta, pois a razão de ser da regra foi desrespeitada, dado que se o problema era a iliquidez, dever-se-ia não anular o que fora feito, mas proferir, diante do pedido certo, acórdão líquido, só com o que cumpriria o parágrafo único do art. 459. A simples anulação é desperdício de atividade processual, que é artigo de luxo, a não merecer esse descarte.