CLITO FORNACIARI JÚNIOR
Sempre se entendeu como finalidade do recurso extraordinário a revisão da questão de direito federal decidida. Com a criação do especial, conferiu-se a esse o mesmo escopo, apartando-se um do outro apenas pela natureza das leis de que cuidavam. Apresentavam-se, pois, não como uma nova instância de julgamento das demandas, mas sim como um juízo que, nos limites da questão de direito federal, ensejava, na verdade, o julgamento do acórdão recorrido.
Possuem esses recursos efeito devolutivo limitado, diferentemente do que se passa com os demais, nos quais o âmbito de atuação do tribunal que os irá julgar é irrestrito, podendo avançar sobre questões de fato e de direito e, ainda, apreciar questões novas, notadamente relativas a matérias de ordem pública, nulidades insanáveis, vícios que não precluem. No especial e no extraordinário, a revisão opera-se somente sobre o quanto expressamente enfrentado pelo juízo ordinário. Ainda assim, reabre-se somente a matéria de direito, afastando as questões de fato (cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, 14ª edição, 2008, n. 324, p. 600). Além disso, necessário se faz que o tema jurídico objeto do recurso tenha sido previamente enfrentado pelas instâncias ordinárias (pré-questionamento), o que mais ressalta o aspecto de simples revisão, centrando o trabalho das instâncias superiores ao quanto consta do acórdão; nada além disso.
Essa estrutura bem exibia a superação das fases do processo, trazendo aos litigantes a sensação de que, quanto mais avançassem os recursos, mais restrita era a possibilidade de discussão do decidido, uma vez que, paulatinamente, ficavam os temas superados. No âmbito das questões de ordem pública, entre as quais se colocam aquelas que o legislador faz questão de afirmar que podem ser alegadas a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição (v.g., arts. 267, § 3º, 301, § 4º, do CPC), era uníssona a posição segundo a qual a alegação da novidade era restrita às instâncias ordinárias, como também o seu conhecimento de ofício, de modo a não poder ser enfrentada nos tribunais superiores, salvo, obviamente, se fosse ela a questão contra a qual se recorria. Isso se verificava quer no recurso extraordinário, quer no especial.
De uns tempos a esta parte, começou a se aventar, quanto ao recurso especial, a dispensa do pré-questionamento das questões de ordem pública (cf. ROGÉRIO LICASTRO TORRES DE MELLO, “Recurso especial e matéria de ordem pública: desnecessidade de prequestionamento”, Recurso especial e extraordinário, Método, 2007, p. 231 e segs.), o que importaria na possibilidade de a parte, sentindo-se prejudicada com a decisão de segunda instância, alegar, em primeira mão, matéria de ordem pública que não havia, anteriormente, sido discutida e decidida. Admitiu-se que isso viesse a ocorrer (entre outros REsp 856.929, rel. ARNALDO ESTEVES LIMA, julgado em 04.08.2008), afetando-se o âmbito do recurso, pois estava sendo “devolvida” às instâncias superiores questão não decidida nos graus de jurisdição ordinários, rompendo-se, destarte, com um desenho sedimentado daquele recurso e que para ele foi transferido a partir de como se entendia o extraordinário.
O problema, todavia, recebeu ainda outro contorno, vindo a admitir-se conhecimento de ofício pela Corte Superior de questões de ordem pública antes sequer apreciadas (cf., amparado em outros precedentes, REsp 869.534, rel. TEORI ALBINO ZAVASCKI, julgado em 27.11.2007, Revista Dialética de Direito Processual, 60/142). Consta do acórdão citado que “superado o juízo de admissibilidade, o recurso especial comporta efeito devolutivo amplo, já que cumprirá ao Tribunal ‘julgar a causa, aplicando o direito à espécie’ (art. 257 do RISTJ; súmula n. 456 do STF)”. Assim, estaria sendo aplicado o que a doutrina denomina efeito translativo, que admitiria ao órgão julgador conhecer de ofício das questões de ordem pública.
Essa posição rompe com o modo como sempre se entendeu o âmbito dos recursos especial e extraordinário, dado ser deferido aos tribunais superiores o exercício tão só de um juízo de revisão do decidido e do recorrido. Admitir-se a provocação do tema só na instância superior transige com o decidido, admitindo recurso sobre tema não versado na decisão; a admissibilidade de exame de ofício da matéria, por sua vez, rompe tanto com a restrição do recurso ao decidido, como também com a limitação do conhecimento da Corte ao recorrido.
Não se pode sustentar que isso está admitido pelo tal efeito translativo, pois dele a legislação não cuida, sendo criação da doutrina, a partir da constatação de que, algumas vezes, o legislador permite conhecimento de ofício, em qualquer grau, de questões antes não trazidas à baila. Essa previsão está no sistema de longa data e, anteriormente, nunca se cogitou de aplicá-la ao extraordinário e ao especial, não havendo justificativa para a releitura da regra, depois de estar sedimentada a estrutura do recurso. Menos ainda é de se inovar, ampliando o recurso, na contramão, pois, atualmente, pugna-se pela restrição à recorribilidade, para o que ideal é o fechamento, o quanto antes, das questões pendentes em juízo.
Ademais, como o processo civil ampara-se no princípio dispositivo, correto é interpretarem-se restritivamente as regras que admitem atuação oficiosa do juízo, ao que se chegaria, no caso, mercê da natureza dos recursos excepcionais.
De outro lado, a ideia franqueia o risco da reformatio in pejus, na medida em que aquele que venceu apenas parcialmente e busca uma vitória completa, pode, sem recurso do vencido, perder o que conseguiu, se a tanto se chegou sem atinar-se para vício formal ou questão de ordem pública, que poderia, por exemplo, ter conduzido o processo à extinção sem julgamento de mérito.
Sem dúvida, o Regimento Interno do STJ e a súmula 456 do STF não conduzem a tanto, pois não autorizam a rejulgar a causa. Fosse assim, teria que se admitir que ela reapreciasse também as questões que não são de ordem pública, proferindo julgamento inteiro. Eles permitem somente, com bem coloca BARBOSA MOREIRA, julgar a matéria objeto da impugnação (Comentários, n. 324, p. 604).
Custa crer que, em momento em que se reclama da instabilidade que atinge as questões submetidas à Justiça e se propugna pela restrição à recorribilidade, venha admitir-se um reexame total quanto a questões que nem aos próprios contendores afigurou-se interessante enfrentar. O mero risco de futura rescisória não é suficiente para se escancarar o especial.
De qualquer modo, com essa amplitude de julgamento, em definitivo, transforma-se o STJ em uma terceira instância, arranhando sua real importância, qual seja, a de ser intérprete final das leis federais, função sem dúvida de maior gabarito, se não para ele, para todos quantos buscam maior segurança no sentir e entender o Direito.